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Editorial

Um desamparado mundial, por Paulo Delgado

Sociólogo traça paralelo entre as melhores cidades do mundo para se viver e a situação desalentadora das crianças brasileiras

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Um desamparado mundial, por Paulo Delgado

"Má cidade joga fora o futuro de uma pátria que só pode ser melhor se amar e proteger as crianças que nela crescem", analisa
(Arte: TUTU)

Por Paulo Delgado

Na semana em que a maior caixa de ressonância do pensamento liberal no mundo, a revista The Economist, de Londres, trouxe sua edição anual de melhores cidades do mundo para se viver— um morango com chantilly para as pessoas que querem e podem viver melhor—, a Unicef publicou, em Brasília, um relatório sobre a situação desalentadora das crianças nas cidades brasileiras.

A qualidade da cidade e a boa formação das crianças são a mesma coisa. Cidade ruim é adoecedora e impõe a todos uma ansiedade crônica. A vida é muito curta para a incompetência a fazer pequena. A má cidade joga fora o futuro de uma pátria que só pode ser melhor se amar e proteger as crianças que nela crescem.

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Vinte e cinco por cento da nota para a qualidade de vida nas cidades é dada pelo estudo da consultoria da Economist para o item estabilidade. Trata-se, basicamente, do levantamento sobre a ocorrência de crimes. Dos leves aos hediondos e terrorismo. Só por aí já se entende porque não há metrópole brasileira na lista. O levantamento da Unicef sobre privações, já tão negativo para o país, nem isso inclui: algo como o que seria o percentual de crianças privadas de estabilidade.

Os outros itens analisados pelo grupo inglês e pela Unicef são os suspeitos de sempre: infraestrutura, acesso e qualidade da saúde privada e pública, cultura e meio ambiente (onde entra corrupção) e educação. Seis das 10 cidades melhor avaliadas estão ou no Canadá ou na Austrália. Nenhuma nos EUA, país mais rico e poderoso do planeta, mas que tem dificuldade de proteger as crianças da violência.

Curiosamente, até alguns dias atrás concorria pela nomeação de candidato a governador nas primárias democratas para as eleições que ocorrerão em novembro no pequeno estado de Vermont, no nordeste dos EUA, um garoto de 14 anos. Foi derrotado por uma candidata transgênero, igualmente sem prévia passagem por cargo eletivo. O estudante, que ainda nem pode votar, fazia campanha com base na tragédia das chacinas que se repetem em escolas e sua ligação com a necessidade de uma melhor regulação sobre porte de armas. Vermont é um estado com um IDH mais alto do que a média dos estados americanos. É de lá o senador democrata Bernie Sanders, querido da boa juventude idealista americana, que perdeu nas primárias presidenciais passadas para Hillary Clinton, depois derrotada por Donald Trump.

A radicalização retórica contra o mal virou um estereótipo e um subproduto do atual estágio da comunicação em massa. Ao mesmo tempo em que mostra a condescendência da sociedade com o rude, abre o flanco dos ingênuos para líderes reacionários toscos, mas que estariam inviabilizados se as instituições funcionassem bem.

A ex-secretária de Estado americana Madeleine Albright publicou um longo estudo sobre o fascismo no mundo. Diz ela ser um alerta sobre algo com o que não se deve brincar, nem fingir não se ver. Lembra que já no entre guerras “a velocidade assustadora da globalização levou muitos a encontrar abrigo nos ritmos familiares de nação, cultura e fé; e pessoas por todo o lado pareciam à busca de líderes que clamavam ter respostas simples e satisfatórias para as confusas questões da modernidade”. Quanto mais complexo o mundo se torna, mais simples e fantasiosas são as estratégias dos demagogos, quase sempre sem maturidade ou força intelectual e moral para a vida prática e suas dificuldades.

O fato é que a grande luta pela democracia do século 20 foi contra grupos, independentemente da ideologia, que se formam por afinidades e discursos variados buscando substituir, na sociedade, a pluralidade pela uniformidade. A má estética que os identifica é a grosseria, a simplificação, o descompromisso de enxergar saídas com autoridade e planejamento, mas sem fúria ou mais violência.

A vida social normal, regida por instituições abertas e rotinas virtuosas, parece muito chata a muita gente. Pense no Canadá e na Austrália, onde estão a maioria das boas cidades para se viver. São lugares “devagar”, salvo pelas belezas naturais e a gentileza da sua gente. Teoricamente, tal calma deveria ser almejada. Desde que a maior iguaria da política não fosse o conflito e a bravata acompanhados do elixir do engodo que é a destruição da razão dos seguidores. Há quem incendeie a sociedade para se oferecer protetor dela.

O século 20, que parecia ter enterrado seus falsos césares, está refugando em saltar para um século 21 melhor diante do surgimento de estranhas figuras em todos os países. Para não piorar as coisas, melhor não ser arrebatado pela agenda da violência de ninguém. Olho no stress pessoal e na falta de paz interior: muitos políticos, atormentados, estão vestidos para uma guerra que não é a da melhoria de vida para todos.

*Paulo Delgado é copresidente do Conselho de Economia, Sociologia e Política da FecomercioSP.
Artigo publicado originalmente no jornal Correio Braziliense no dia 19 de agosto de 2018.

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