Legislação
10/12/2025A nova era do contencioso administrativo e judicial tributário: visões para entender os entraves e as transformações da Reforma Tributária
7º Congresso Codecon/SP expõe as fragilidades institucionais, tensões federativas e riscos operacionais do novo modelo do IBS e da CBS
Robson Maia Lins alerta sobre um possível aumento nos litígios. (Foto: Edilson Dias/FecomercioSP)
Argos Campos Ribeiro Simões aponta os riscos da perda da pluralidade interpretativa e da dupla fiscalização por entes diferentes. (Foto: Edilson Dias/FecomercioSP)
Márcio Olívio Fernandes da Costa, presidente do Codecon/SP, durante o 7º Congresso. (Foto: Edilson Dias/FecomercioSP)
Simone Rodrigues Costa Barreto analisa a extinção dos incentivos estaduais. (Foto: Edilson Dias/FecomercioSP)
Tathiane Piscitelli avalia os regimes diferenciados como principal instrumento de justiça tributária da reforma. (Foto: Edilson Dias/FecomercioSP)
Eduardo Perez Salusse salienta a necessidade de uniformização de regras pelo Comitê Gestor do IBS. (Foto: Edilson Dias/FecomercioSP)
Danilo Barth Pires apresenta o Acordo Paulista como instrumento de conformidade e desjudicialização. (Foto: Edilson Dias/FecomercioSP)
Tácio Lacerda Gama reflete sobre a nova era digital. (Foto: Edilson Dias/FecomercioSP)
O 7º Congresso Codecon/SP de Direito Tributário reuniu, em 26 de novembro, um conjunto de advogados tributaristas, juristas, autoridades fiscais, contadores e lideranças empresariais para projetar os contornos da transição que o novo sistema tributário colocará sobre as empresas e os contribuintes a partir do ano que vem.
O evento — realizado pelo Conselho Estadual de Defesa do Contribuinte de São Paulo (Codecon/SP), presidido por Márcio Olívio da Costa, vice-presidente da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) e presidente do Conselho de Assuntos Tributários da Entidade, que aconteceu na sede da FecomercioSP, em novembro — não se limitou a discutir a teoria da reforma. Buscou, sim, antecipar os desafios práticos, operacionais e, sobretudo, jurídicos da implementação do regime consolidado pela Emenda Constitucional (EC) 132/2023, pela Lei Complementar (LC) 214/2025 e pelos projetos em tramitação — como o PLP 108/2024 — que normatizam a tributação sobre consumo por meio de tributos de valor agregado, entre outros pontos.
Os especialistas, com décadas de experiência em tribunais administrativos e judiciais, convergiram em uma mesma constatação: a legislação avançou mais rápido do que a infraestrutura institucional capaz de sustentá-la, criando flancos de insegurança para empresas, governos e para o próprio sistema de Justiça.
A magnitude da transformação está clara, pois o sistema de tributação que vigorará não apenas exige adaptações contábeis e operacionais, como também impõe revisões profundas da arquitetura institucional e do contencioso tributário, com impacto direto sobre as empresas, os escritórios, os contadores e os departamentos jurídicos, além dos Fiscos estadual e municipal.
O contencioso tributário no Brasil reformado
A uniformização como ponto nevrálgico foi o foco da exposição do tributarista Robson Maia Lins, sócio do escritório Barros Carvalho Advogados, professor na PUC/SP e no Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet). Ele traçou um panorama histórico da uniformização judicial para mostrar que o País convive, há quase um século, com fragilidades estruturais no processo tributário. Lins recordou a ausência de mecanismos eficazes de vinculação entre 1965 e 1988, as contradições do Supremo Tribunal Federal (STF) e o crescente ativismo da Corte, que hoje impõe prazos ao Legislativo, como no caso do Imposto sobre Grandes Fortunas.
Na sua visão, a retirada das regras processuais do IBS e da CBS durante a tramitação da reforma é o maior gatilho de litígios futuros. “A exigência de normas idênticas para os dois tributos (artigo 149-B) e a competência do STJ para conflitos federativos, sem clareza sobre o acesso do contribuinte, formam um campo fértil para disputas”, ressaltou. Lins comparou ainda o momento à guerra fiscal dos anos 1990. “Se não cuidarem do processo, o Supremo cuidará”, advertiu.
Governança e coordenação fiscal sob tensão
Já Argos Campos Ribeiro Simões, presidente do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT/SP) — órgão paritário de julgamento dos processos administrativos tributários da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (Sefaz/SP) —, alertou que a Reforma Tributária pode substituir a complexidade atual por outra ainda maior. “Minha principal preocupação é a perda da pluralidade interpretativa, já que os colegiados paritários deixam de existir nas instâncias decisórias do IBS e da CBS. O Comitê Gestor, com predominância da Receita Federal e decisões por unanimidade, comprometeria o equilíbrio federativo e a credibilidade dos julgamentos”, destacou.
Outro risco concreto apontado foi a dupla fiscalização simultânea. O mesmo contribuinte poderá ser autuado por fiscais federais, estaduais e municipais, com estruturas desiguais e sobreposições de processos. As contradições do PLP 108 — que ora manda anular atos ilegais, ora proíbe afastar normas infralegais — tornam o cenário ainda mais instável. “A reforma pretende simplificar, mas precisamos evitar que a tentativa de organizar o caos acabe criando outro”, sintetizou Simões.
Regimes × Benefícios fiscais atuais
Simone Rodrigues Costa Barreto, doutora e também professora no Ibet, além de sócia do Aires Barreto Advogados, analisou os efeitos da extinção dos incentivos fiscais e a criação do Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais. “Embora previsto para aportar R$ 160 bilhões, o fundo dependerá da capacidade fiscal da União”, considerou. E mais grave: caberá ao governo federal habilitar, caso a caso, os contribuintes beneficiados por incentivos concedidos pelos Estados — interferência que, segundo ela, viola a autonomia federativa.
Simone advertiu para o impacto econômico. “Empresas instaladas no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste podem migrar para o Sul e o Sudeste, esvaziando regiões e reduzindo o consumo local, base arrecadatória do princípio do destino.” Indicou ainda a ausência de compensação para benefícios relacionados ao ISS. E sobre os regimes, enfatizou que os específicos apenas ajustam a tributação, enquanto os diferenciados reduzem carga, mas com revisão a cada cinco anos. “Serviços profissionais deveriam estar entre os específicos, e não nos diferenciados”, concluiu.
Transição tributária e Acordo Paulista
No sexto painel, os especialistas afirmaram que a transição para o novo sistema tributário (IBS, CBS e Imposto Seletivo — IS) exige, além de regras claras, instrumentos para reduzir o contencioso e ampliar a previsibilidade para empresas e para o Estado. As exposições consideraram a transação tributária e o Acordo Paulista caminhos centrais para atravessar a mudança com segurança jurídica e cooperação institucional.
Eduardo Perez Salusse, doutor em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC/SP, sustentou que a solução consensual de conflitos tributários não é apenas conveniente. “É compatível com valores constitucionais, por privilegiar pacificação social e eficiência administrativa.” Ele descreveu a transação como uma negociação em que Estado e contribuinte, ao ponderarem custos e riscos do litígio, encontram uma zona racional de acordo com benefícios possíveis para ambos, razão pela qual o instituto deixou de ser mera previsão do Código Tributário Nacional (CTN) e se consolidou como ferramenta de gestão do contencioso. “No novo modelo, ressalto o papel do Comitê Gestor do IBS e o desafio de uniformizar regras entre entes para evitar fragmentação de créditos e insegurança jurídica. Defendo ainda ajustes, como regras mais claras sobre honorários, agilidade na análise de pagamentos com precatórios e critérios transparentes e previsíveis de avaliação e controle”, disse.
Na sequência, Danilo Barth Pires, subprocurador-geral do Estado de São Paulo — Contencioso Tributário-Fiscal, apresentou o Acordo Paulista como política construída com entidades representativas, advocacia e setor produtivo, voltada para a conformidade fiscal e, sobretudo, a desjudicialização. “Desde fevereiro de 2024, o programa negociou R$ 63,4 bilhões, abrangendo débitos inscritos em dívida ativa de ICMS, IPVA, ITCMD e multas do Procon, com adesão online”, apontou.
Pires explicou que o eixo do modelo é o grau de recuperabilidade, que define benefícios e descontos. “Com ajustes regulatórios, a classificação passou a considerar quatro critérios [garantias, parcelamentos, histórico de pagamento e data da constituição definitiva], ampliando o enquadramento de casos como difícil recuperação ou irrecuperável, com descontos e parcelamento em até 120 vezes, sem entrada ou garantia”, reforçou. Por fim, defendeu a resolução de impasses por canais administrativos, em ambiente de cooperação, transparência e boa-fé, para evitar judicialização que esvazie o objetivo do acordo.
Dentre os pontos de convergência, ambas as falas reforçaram que a transição envolve mudança de cultura, exige coordenação e governança para reduzir insegurança e aponta que acordos bem desenhados podem gerar ganhos para o Estado e previsibilidade para as empresas. Nesse recorte, a mensagem final é que o novo sistema demandará um contencioso mais racional, e São Paulo aposta na transação como ferramenta de gestão — desde que haja uniformização de critérios, segurança jurídica para a advocacia e transparência na consensualidade.
Critérios e coerência técnica dos regimes diferenciados
Tathiane Piscitelli, advogada e sócia do Heleno Torres Advogados, além de professora na FGV/SP, afirmou que os regimes diferenciados são o principal instrumento de justiça tributária da reforma, pois materializam o novo dever constitucional de atenuar a regressividade econômica. Na sua exposição, explicou que as reduções de 60% e 100% seguem um critério de essencialidade — saúde, educação, higiene, alimentação, produtos agropecuários, cultura e itens de acessibilidade — e que a lista não é aleatória, mas que precisa ser tecnicamente coerente.
“A uniformidade nacional dos regimes diferenciados elimina a possibilidade de incentivos estaduais ou municipais, reduzindo a capacidade local de atrair investimentos estratégicos, como datacenters e projetos de energia limpa”, disse. Ela também criticou a redução de 30% para sociedades uniprofissionais, que considera mal-alocada. “Entrou onde deu para entrar, não onde deveria estar.”
O futuro da tributação
No encerramento do evento, Tácio Lacerda Gama, professor na PUC/SP e presidente do Instituto de Aplicação do Tributo (IAT), apresentou uma reflexão incisiva sobre como a digitalização e a Reforma Tributária redesenham a prática tributária. Com linguagem direta, afirmou que “o que nos trouxe até aqui talvez não nos leve adiante”, indicando que a advocacia, a administração tributária e o próprio Judiciário operam, hoje, em um ambiente radicalmente distinto daquele que moldou gerações anteriores.
O especialista ressaltou que a era digital mudou completamente o ambiente tributário. Atualmente, qualquer pessoa acessa decisões, jurisprudência e análises técnicas em segundos. Nesse cenário, teses fracas não sobrevivem, e o julgador rapidamente identifica inconsistências. “Sem confiança, nenhuma tese prospera”, afirmou, reforçando que credibilidade e precisão são ativos essenciais.
Ele ainda lembrou que, com um contencioso que supera R$ 5,7 trilhões, o sistema passou a decidir em blocos, por meio de precedentes e uniformizações. Por isso, a advocacia — e as empresas — precisam entender em qual “trilha decisória” cada caso se encaixa e saber diferenciá-lo tecnicamente de situações desfavoráveis.
Gama também alertou que, em um ambiente onde milhões de pessoas opinam sobre temas tributários, comunicar-se com clareza, sem simplificações equivocadas, tornou-se indispensável. Isso exige seriedade, honestidade argumentativa e adaptação ao escrutínio permanente.
Para ele, o futuro da tributação não depende apenas de novas leis, mas de uma nova postura profissional, capaz de atuar em um sistema mais rápido, transparente e guiado por precedentes. “Vencer casos difíceis exige reconhecer sua complexidade, e trabalhar com rigor para superá-los”, concluiu.
Uma reforma que exige mais do que legislação
As exposições convergem em um ponto decisivo: sem estrutura processual, coordenação federativa e segurança operacional, a reforma pode frustrar as próprias promessas de simplificação, justiça tributária e neutralidade econômica. Os painéis do período da tarde do 7º Congresso Codecon/SP mostraram que a questão não é somente aplicar novas regras, mas reconstruir a espinha dorsal do contencioso tributário brasileiro em bases sólidas, transparentes e tecnicamente coerentes.
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