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Negócios

A liberdade da feira

Não se trata de invenção nacional, mas foi nas ruas brasileiras que as feiras livres ganharam cores, sabores, aromas e sotaques

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A liberdade da feira
Em São Paulo, o modelo de feira como conhecemos hoje foi regulamentado em 1914, organizando uma prática que já ocorria informalmente

A ideia de feira de rua não é uma invenção brasileira. Os mercados livres em locais públicos existem desde a Antiguidade em boa parte do mundo. Mas é fato que foi por aqui que esse tipo de comércio ganhou cores, sotaques, produtos típicos e transformou-se em tradição popular.

Um paulistano, por exemplo, normalmente sabe onde e em qual dia da semana fica a melhor feira da vizinhança, tem uma barraca de pastel favorita, conhece pelo nome um ou dois vendedores de frutas e, às vezes, já deixa o peixe encomendado no capricho.

Conhece o macete da xepa, que derruba os preços dos vegetais lá pelo fim da manhã — com a desvantagem óbvia de que os exemplares melhores e mais vistosos são vendidos mais cedo. Entende o código da pechincha e nem sempre sorri com os bordões dos feirantes:

— Um é três, dois é cinco, cinco é dez.

— Aqui é barato, o marido da barata.

— Pega no melão que aqui ele tá bom.

— Moça bonita não paga, mas também não leva.

Esse contexto faz com que o brasileiro se sinta mais do que um cliente ou consumidor: ele faz parte da comunidade feira livre, há pertencimento. “Ele se sente acolhido, inserido num local onde pode participar livremente, interagir do modo como desejar. No tempo da feira, o homem do povo sente que tem voz, que pode se expressar em um espaço democrático e até ganhar fôlego para transformar uma situação. Quase como uma validação da cidadania, uma oportunidade de colocar o poder na mão de pessoas pobres”, diz a pesquisadora Camila Aude Guimarães, em trabalho realizado em 2010 no Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo (Celacc-USP). “E, assim, o indivíduo ganha ânimo para continuar a rotina com mais força. Outra constatação interessante é que em uma feira livre estão presentes todos os aspectos da cultura popular — oralidade, espacialidade, artesanato e festa”, afirma, na sua pesquisa.

“Feira de rua é, sem dúvida, um traço cultural do qual o brasileiro não abre mão”, pontua a gastrônoma e historiadora Camila Landi, professora e coordenadora do curso de Tecnologia em Gastronomia na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Está associado à sua rotina. Ele frequenta as feiras praticamente toda semana”, ressalta.

De acordo com a historiadora, esses espaços retratam aspectos históricos e culturais, uma vez que neles é “possível identificar a diversidade presente”, ou seja, “o que se come, a média de consumo, as predileções”, além de “aspectos associados à segurança alimentar, os hábitos incorporados, os sotaques e os migrantes, entre outros aspectos, incluindo uma profunda análise do poder econômico local”. Camila Landi ressalta que, no Brasil, as feiras livres são normalmente ambientes acolhedores, alegres e festivos, capazes de reunir povos e culturas diferentes, com seus chavões próprios e regulamentos básicos, como local, data e horários de início e fim. 

Origem da compra e venda

As feiras remetem aos primeiros passos da vida mercantil, pois nasceram da necessidade de troca dos excedentes de mercadorias e estão atreladas ao início do uso de moedas.

No Brasil, o modelo veio com o colonizador europeu — o primeiro registro data de 1548. Aqui, ganhou componentes próprios. Segundo Camila Landi, inicialmente se tornou mistura cultural dos primeiros estrangeiros, os portugueses e os africanos, com os saberes e víveres dos povos indígenas. A partir de então, as feiras passam a acontecer “sempre a céu aberto, com a troca de mercadorias diversas, um local de comida, comércio, música, danças, encontros”, explica. Com o passar do tempo, as feiras passaram a assumir características distintas Brasil afora. “Em cada recorte geográfico, aparecem com sotaques, produtos e jargões distintos, sempre ligados à cultura local, de nativos e migrantes”, aponta.

Em São Paulo, o modelo de feira como conhecemos hoje foi regulamentado em 1914, organizando uma prática que evidentemente já ocorria informalmente pela cidade. Segundo a prefeitura, a primeira feira livre oficial tinha 26 feirantes e ocorreu no Largo General Osório, no centro da capital paulista. O sucesso foi tanto que a segunda edição, no Largo do Arouche, já contava com 116 comerciantes. Atualmente, a cidade conta com mais de 950 feiras realizadas semanalmente em todo o município, sem contar eventos esporádicos. Em todo o País, são mais de 5 mil.

Plural como a cultura brasileira

Se em São Paulo tem pastel e, pela influência oriental, é muito comum encontrar também produtos de tradição japonesa ou chinesa. Em Belém, no Pará, predominam peixes, frutas e farinhas, como lembra Camila Landi. “Cada feira apresenta-se com um formato particular, regional. Naturalmente, hoje em dia, os produtos também estão globalizados e, dependendo da oferta e da demanda, pode-se encontrar itens que antes não apareciam nesses locais de venda”, afirma. “Mas é fato que as feiras têm dia, local, horário e sotaque. E ainda são ponto de encontro de amigos e familiares. Tornam-se um hábito”, reforça.

Em sua pesquisa, Camila Guimarães, do Celacc, ressalta a atmosfera, como se a feira representasse uma janela no tempo e no espaço, um respiro contra a modernidade, uma volta às tradições do pequeno comércio, com acordos informais, simplicidade e organização analógica. “Desenvolvem-se e cultivam-se, nesse espaço, relações de confiança, troca e amizade. Não existe apenas a venda. Há confiança tanto no valor e qualidade dos produtos comercializados, quanto nos vendedores e pessoas conhecidas encontradas no local”, descreve.

Ainda de acordo com a pesquisadora, nas feiras há fofocas, lembranças e preservação dos costumes e da rotina, mantêm-se hábitos e relações com a comunidade. Há também a possibilidade de frear o ritmo frenético do cotidiano, de fazer uma compra de maneira mais calma, mais descontraída, mais prazerosa. “No fim de semana, mostra-se para muitos como um espaço de passeio. Além de um local aberto e acessível a toda idade, sexo, cor, estado civil e religião”, finaliza.

 Matéria originalmente publicada no site da Revista Problemas Brasileiros, uma realização da FecomercioSP. Acesse aqui!

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