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Editorial

Cachaça não é água não

Reconhecida como símbolo nacional, a origem da bebida se confunde com os primeiros capítulos da história do Brasil

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Cachaça não é água não
Oficialmente, cachaça é o nome exclusivo da aguardente de cana produzida no Brasil, a partir do caldo fresco da cana, com teor alcoólico entre 38% e 48% (Crédito: Problemas Brasileiros)

Em 1610, o navegador francês François Pyrard de Laval (1578-1621) esteve em Salvador, capital da Bahia, e escreveu: “Faz-se vinho com o suco da cana, que é barato”. Quem conta essa história é o folclorista e historiador Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), no livro Prelúdio da cachaça (Instituto do Açúcar e do Álcool, 1968).

Fato é que a bebida genuinamente nacional nada mais é do que a aguardente feita com o insumo mais abundante nessas terras no início da colonização, a cana-de-açúcar. Trata-se, portanto, da versão brasileira dos destilados tradicionalmente produzidos na Europa com uvas — como a grappa italiana —, outras frutas — como pera e maçã — ou cereais.

“A cachaça é uma bebida tipicamente brasileira, com uma trajetória fascinante e repleta de curiosidades”, conta o engenheiro químico Luiz Gustavo Lacerda, professor e pesquisador de alimentos na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). “Embora hoje seja reconhecida como um símbolo nacional, sua origem se confunde com os primeiros capítulos da história do Brasil colonial”, acrescenta.

A força dos canaviais

Lacerda contextualiza. A bebida surgiu como um desdobramento da produção de açúcar nos engenhos instalados pelos portugueses a partir da década de 1530, quando o cultivo da cana foi introduzido no território colonial brasileiro. “Durante o processo de fabricação do açúcar, o caldo da cana, conhecido como garapa, era fervido e passava por uma etapa de cristalização”, relata Lacerda. “Parte do melaço, um subproduto mais espesso e escuro da cana, não se cristalizava e acumulava-se no fundo das formas. Em vez de ser descartado, esse resíduo passou a ser reaproveitado”, explica o professor.

Segundo Lacerda, no início, esse melaço era usado até como ração para porcos. Com o passar do tempo, ganhou destino mais nobre — fermentado e destilado, se transformava em uma bebida alcoólica forte e aromática, a cachaça. “O que começou como uma solução prática para evitar desperdícios transformou-se em um dos símbolos mais marcantes da identidade brasileira”, complementa.

A matéria-prima era abundante. O colonizador europeu tinha conhecimento da técnica da destilação. Resultado: a bebida passou a ser produzida de forma sistemática. “Podemos afirmar, portanto, que a cachaça é uma invenção brasileira. Ou, mais precisamente, uma adaptação local”, conclui Lacerda. “Assim como a grappa italiana é produzida do bagaço da uva, a cachaça surgiu do aproveitamento dos resíduos da produção do açúcar”, explica.

Nada se perde, tudo se aproveita. Para o engenheiro, a comparação entre ambas as bebidas é válida, não apenas pela lógica do reaproveitamento, como também pela relevância cultural que ambas assumiram em seus países de origem.

Câmara Cascudo também concorda que a invenção é brasileira. Ele salienta que, em Portugal, já se fazia uma cachaça, chamada de bagaceira, de uvas. E a solução obtida da cana foi made in Brazil. “Foi no Brasil que a cachaça passou a ser obtida da cana-de-açúcar, do caldo ou do melaço”, pontua.

Bebida de mil nomes

Quanto à nomenclatura, a criatividade popular impressiona. Pinga, branquinha, caninha, água que passarinho não bebe, mé, marvada… A aguardente nacional tem inúmeros apelidos, mas cachaça é o termo oficial, inclusive utilizado para exportação. Mas não há consenso sobre o porquê da nomenclatura.

“Sua origem permanece envolta em teorias”, observa Lacerda. “Uma das mais aceitas sugere que o termo se referia, inicialmente, à espuma formada durante a fervura do caldo de cana nos tachos dos engenhos. Essa espuma fermentava naturalmente e era consumida, principalmente, por pessoas escravizadas, que notavam seus efeitos alcoólicos”, detalha. Com o tempo, o nome passou também a designar o líquido destilado obtido no processo. “E assim nasceu a palavra que até hoje batiza uma das bebidas mais emblemáticas do Brasil”, conta o professor.

Há uma diferença técnica entre cachaça e aguardente — não são termos sinônimos. Na verdade, toda cachaça é uma aguardente — mas o contrário não é correto. Segundo o Ministério da Agricultura e Pecuária, cachaça é uma aguardente feita de cana-de-açúcar, e aguardente é o nome dado a qualquer destilado de origem vegetal com teor alcoólico entre 38% e 54%.

Oficialmente, cachaça é o nome exclusivo da aguardente de cana produzida no Brasil, a partir do caldo fresco da cana, com teor alcoólico entre 38% e 48%. “É um produto com identidade e regulamentação próprias, reconhecido oficialmente pelo Ministério da Agricultura. Em outras palavras, se for de cana, feita no Brasil e seguir as regras, é cachaça. Caso contrário, é apenas aguardente de cana”, sintetiza Lacerda.

Pelo produto nacional

Uma bebida tão importante que chegou até a motivar um motim popular. Em 1660, o Rio de Janeiro viveu a Revolta da Cachaça, uma reação de produtores locais à proibição imposta pela Coroa portuguesa de fabricação e venda da bebida. “Na época, a cachaça já era muito consumida no Brasil, mas Portugal queria proteger o comércio de bebidas como o vinho e a bagaceira, produzidas na metrópole e trazidas para a colônia”, acrescenta o professor.

A proibição gerou a indignação de comerciantes e produtores, que viam na cachaça uma importante fonte de renda. Apesar da repressão portuguesa ter sufocado o movimento, o evento mostrou a força dos interesses locais e, com o tempo, levou ao reconhecimento da cachaça como parte da economia e da cultura brasileiras.

Então, um gole para o santo e saúde!

Para saber mais:

Guia Mapa da Cachaça, de Felipe Jannuzzi (Editora Senac São Paulo, 2025).

Matéria originalmente publicada no site da Revista Problemas Brasileiros, uma realização da Federação.

A FecomercioSP acredita que a informação aprofundada é um instrumento fundamental de qualificação do debate público sobre assuntos importantes não só para a classe empresarial, mas para toda a sociedade. É neste sentido que a entidade publica, bimestralmente, a Revista Problemas Brasileiros.

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