Legislação
22/09/2025Desafios e impactos do Imposto Seletivo para o Comércio e os Serviços
Advogados tributaristas e empresários discutem as incertezas e os riscos do novo tributo, que pode redefinir estratégias de gestão e competitividade dos setores


















Pela primeira vez na pauta do Conselho de Assuntos Tributários da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), o Imposto Seletivo (IS) — criado pela Reforma Tributária de 2023 e previsto para entrar em vigor em 2027 — foi o centro das discussões. Embora apresentado como instrumento extrafiscal, destinado a desestimular o consumo de bens e serviços nocivos à saúde e ao meio ambiente, o “imposto do pecado” desperta apreensão entre especialistas e empresários.
“O IS foi apresentado como um tributo de caráter extrafiscal, mas levanta sérias preocupações. Há insegurança jurídica sobre o que será considerado prejudicial, além de risco de efeito cascata por compor a base de outros tributos e desdobramento econômico relevante, com repasse de custos ao consumidor final”, iniciou o debate o presidente do conselho, Márcio Olívio Fernandes da Costa.
Com esse foco, o presidente destacou que a discussão sobre o IS vai muito além da sua função regulatória. “É preciso avaliar os seus reflexos sobre a competitividade, a segurança jurídica e a própria justiça fiscal — pontos decisivos para o futuro do Comércio e dos Serviços no Brasil”, complementou.
Dessa forma, o debate abordou três pontos fundamentais: a insegurança jurídica, diante da amplitude conceitual sobre o que pode ser considerado prejudicial; o tributo sobre tributo, já que o IS integrará a base de cálculo do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), ampliando a carga efetiva; e o impacto econômico.
Riscos de distorções, constitucionalidade e regressividade
Heleno Taveira Torres, professor titular da Faculdade de Direito na Universidade de São Paulo (FDUSP), trouxe uma análise minuciosa sobre os ímpetos do IS. Segundo ele, a Constituição definiu que o novo imposto deveria incidir apenas sobre bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. No entanto, a Lei Complementar (LC) 214/2025 ampliou a lista de incidência, incluindo veículos, aeronaves e embarcações; produtos fumígenos; bebidas alcoólicas; bebidas açucaradas; bens minerais; e concursos de prognósticos e fantasy sport — o que abre espaço para insegurança jurídica e distorções no sistema, sem evidências científicas. “Se o propósito constitucional é tributar produtos nocivos, precisamos questionar até que ponto itens como veículos novos podem ser enquadrados nesse critério.”
Um dos pontos que mais preocupam os especialistas é a indefinição das alíquotas, que só serão fixadas por lei ordinária. “Essa falta de clareza gera um cenário de incerteza para empresas e investidores”, afirmou Torres.
O professor citou o caso das bebidas alcoólicas como exemplo de controvérsia. Embora a progressividade pelo teor alcoólico tenha prevalecido nos debates legislativos, não está claro se a escala será gradual (1%, 2%, 3%) ou mais abrupta (1%, 10%, 50%). “As empresas aguardam ansiosamente por essa definição, pois dela dependerá o efeito econômico direto sobre setores inteiros, como bares, restaurantes e hotelaria”, disse.
Ainda ao abordar bebidas alcoólicas, açucaradas e produtos fumígenos, Torres ironizou que o IS poderia ser considerado “o imposto dos botecos”, pois atinge diretamente esse segmento. Ele lembrou que, embora essa tributação seja justificada sob o argumento de saúde pública, muitas bebidas já passaram por processos de redução de açúcar e adaptação a padrões mais modernos de consumo.
No caso específico das bebidas açucaradas, o professor apontou mais uma contradição. “O açúcar, em si, não é tributado, mas as bebidas derivadas passam a ser. O que parece prevalecer é o peso arrecadatório desses mercados mais do que a lógica de proteção à saúde.”
Torres também questionou a coerência de tributar, por exemplo, os veículos novos, que muitas vezes já saem de fábrica com mecanismos de controle de poluentes, enquanto o problema ambiental mais grave vem da frota antiga. Além disso, destacou o risco de regressividade. “A incidência sobre veículos tende a afetar desproporcionalmente as camadas mais pobres, em violação ao princípio constitucional que veda tributos regressivos.”
Outro ponto sensível levantado na exposição foi a dupla tributação sobre poluentes. Como o combustível fóssil já é tributado na origem, a aplicação do IS também sobre automóveis poderia configurar sobreposição tributária, contrariando a regra de que a incidência deve ocorrer apenas uma vez.
Por fim, Torres alertou que o debate sobre o tributo está longe de se encerrar. Ele chamou a atenção para os gargalos administrativos e jurídicos que surgirão com a gestão centralizada do novo sistema em Brasília, prevendo aumento de litígios e disputas judiciais. “Ainda temos um longo caminho de discussões. O que não podemos é permitir que o Seletivo se torne um instrumento arrecadatório disfarçado, em vez de cumprir o seu papel extrafiscal”, concluiu.
Do ideal ao improviso fiscal, commodities e questões ambientais
O segundo expositor, José Maria Arruda de Andrade, professor associado na FDUSP, também apontou os riscos do novo tributo se transformar em instrumento de arrecadação permanente, além das distorções na sua aplicação prática.
Segundo ele, o IS tem raízes históricas nos impostos sobre o consumo de produtos específicos, como tabaco e bebidas alcoólicas, mas, no Brasil, acabou se transformando em algo distinto. “O Seletivo se tornou uma espécie de quinto andar da carga tributária. Ele se sobrepõe ao IBS e à CBS, criando uma sobretributação que foge ao desenho idealizado da reforma”, afirmou Andrade.
O professor ressaltou que, em teoria, o IS deveria funcionar como um instrumento corretivo, encarecendo produtos nocivos para reduzir o consumo. No entanto, a realidade fiscal brasileira o distorceu. O convidado ainda ressaltou que, ao assumir o compromisso de compensar Estados e municípios pelas perdas do antigo Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a União transformou o tributo em uma “meta de arrecadação mensal”. “A União se comportará como um viciado: toda vez que cair o consumo de cigarro ou refrigerante, terá de buscar novas bases de incidência ou aumentar alíquotas para fechar as contas”, alertou.
Andrade também criticou a inclusão de automóveis, aeronaves e embarcações na lista de incidência. De acordo com ele, essas escolhas têm pouco a ver com saúde ou meio ambiente e refletem mais uma estratégia arrecadatória e protecionista. “O automóvel não deveria estar nessa lista, mas foi incluído para garantir volume de arrecadação e até como instrumento de proteção da Indústria nacional frente às importações”, afirmou. Ele ressaltou que o modelo brasileiro se afasta dos exemplos internacionais de sin taxes, como os aplicados nos Estados Unidos ou no México, que se limitam a bebidas açucaradas e produtos fumígenos.
Outro tópico levantado foi a tentativa de incluir minérios, petróleo e gás natural na base do imposto. Para o professor, essa medida não cumpre a função regulatória, já que o preço dessas commodities é definido no mercado internacional. “Tributar a extração de ferro ou petróleo não vai reduzir consumo, apenas vai sangrar a rentabilidade das empresas e jogar contra o próprio País, que depende desses recursos estratégicos”, argumentou o professor.
No caso das bebidas açucaradas, Andrade também enfatizou a incongruência entre o discurso oficial e a realidade brasileira. “Estamos consumindo 30% menos refrigerantes nos últimos dez anos, sem precisar de IS. Hoje, apenas 1,3% das calorias da família brasileira vem dessas bebidas. Não estamos mirando saúde pública de fato, mas três grandes empresas que dominam 80% do mercado e já têm histórico de litígios com a Receita”, ironizou o foco do tributo.
Andrade concluiu que o imposto nasce com um “desenho torto”, mais preocupado em atender às exigências fiscais imediatas do que em alinhar-se com políticas públicas consistentes.
O futuro ainda incerto
A avaliação conjunta dos especialistas deixa claro que o IS surge sob forte desconfiança. Se, de um lado, carrega a promessa de alinhar tributação com políticas de saúde e meio ambiente, de outro, pode se transformar em mais um peso fiscal, alimentando disputas federativas e ampliando a complexidade do sistema.
Como resumiu os professores da USP, trata-se de um tributo “torto” e o seu futuro dependerá da capacidade do legislador de respeitar os limites constitucionais e dar segurança às empresas. Esse rico e complexo debate deixou claro que o IS transcende a função extrafiscal para a qual foi concebido. Segundo os advogados tributaristas, é um campo fértil de discussões sobre constitucionalidade, seletividade e segurança jurídica. Já para os empresários, trata-se de um alerta para reorganizar estratégias de gestão e competitividade em um ambiente de incerteza regulatória [leia o boxe abaixo].
“Cabe às empresas se prepararem, com planejamento tributário sólido e monitoramento constante da regulamentação, para não serem surpreendidas por aumentos inesperados de carga. E cabe a nós, do Conselho de Assuntos Tributários, reafirmar a nossa missão de zelar pela racionalidade e pelo equilíbrio do sistema tributário nacional. A FecomercioSP se coloca como parceira dos setores representados na construção de um ambiente de negócios mais justo, competitivo e previsível, seguindo atenta para evitar que o IS não se transforme em um instrumento de elevação generalizada da carga tributária”, encerrou Costa.
Recomendações práticas para os empresários
Os especialistas convergiram em alguns pontos de alerta e orientação para o setor produtivo. Confira a seguir.
- Monitorar a regulamentação: a definição das alíquotas em lei ordinária será decisiva para o impacto aos negócios.
- Investir em planejamento tributário: antecipar cenários é fundamental para avaliar riscos de aumento de custos em cadeias longas do Comércio e dos Serviços.
- Revisar contratos e precificação: empresas devem se preparar para o possível repasse de custos ao consumidor final.
- Acompanhar compromissos ambientais e de saúde pública: entender como o governo alinhará o IS com políticas internacionais (como o Acordo de Paris) será vital para setores de alimentos, bebidas, transporte e mineração.
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