Legislação
15/07/2025Envelhecemos rápido — e quem vai cuidar de nós?
Para José Pastore, o despreparo do Brasil para a nova realidade demográfica traz riscos não só para a atividade do cuidado, mas também para o equilíbrio da Previdência e para a qualidade do envelhecimento

A economia do cuidado se impõe como questão prioritária diante do novo perfil demográfico do mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), até 2030, o número de pessoas com 60 anos ou mais aumentará 40%; até 2050, esse contingente deve dobrar, ultrapassando 2 bilhões de idosos. A previsão é que entre 2020 e 2050, a população mundial com 80 anos ou mais triplique, chegando a 426 milhões de pessoas.
O Brasil segue na mesma direção. O número de idosos no País aumentou 57% em apenas 12 anos, segundo o IBGE. Ao mesmo tempo, nascem cada vez menos pessoas: em 1960, cada mulher brasileira tinha, em média, mais de seis filhos, um cenário que contrasta com a realidade atual — em 2022, essa média caiu para apenas 1,5 filho por mulher. “Não dá para repor a população, o que dirá crescer”, ressalta o sociólogo José Pastore, presidente do Conselho de Emprego e Relações de Trabalho da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).
Esse quadro gera problemas de duas ordens: a população em condições de trabalhar está encolhendo, ao passo que a parcela que não trabalha, mas que precisa de serviços de saúde e assistência, tende a “explodir”.
“Isso tudo significa que vamos ter uma demanda enorme por cuidadores, não só para idosos, mas para crianças e pessoas doentes e com deficiência. Vão faltar braços e preparo para tanta necessidade. Isso sem contar a pressão nos sistemas de saúde e na Previdência, que só aumenta”, complementa Pastore. “O desafio, agora, é fazer com que essas pessoas envelheçam bem.”
Frente a desse panorama mundial, o sociólogo analisa, em entrevista exclusiva, os principais impasses e caminhos para a economia do cuidado no Brasil.
O Brasil não está imune à transformação demográfica que ocorre no mundo, pressionando a demanda por serviços de cuidados. Mas ainda persistem algumas questões importantes, como a qualificação da mão de obra, a formalização do trabalhador e o regime laboral. Qual é a sua visão a respeito disso no contexto brasileiro?
O setor de cuidados está entre os mais demandados no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Só que, aqui, estima-se que existam 2 milhões de trabalhadores na áera, mas esse número é muito subestimado, vários fatores não entram na conta. Tem muita gente que atua no cuidado — como os familiares — e não se considera profissional, faz porque precisa. Em sua maioria, quase tudo é feito por mulheres, sem reconhecimento, nem proteção legal, tampouco treinamento adequado. No entanto, só pelo quadro demográfico, já se vê que há uma demanda fantástica, e isso deve aumentar muito daqui para a frente.
De acordo com as projeções do IBGE, a população brasileira deve alcançar o pico de 220,4 milhões em 2041 e, a partir daí, começar a diminuir, chegando a 199,2 milhões em 2070
E como é um setor muito heterogêneo — pessoas com (ou sem) registro e com (ou sem) treinamento —, ainda precisa de muita pesquisa para saber quais são as necessidades dos cuidadores e das empresas ou famílias que contratam.
Por outro lado, o que nós percebemos no seminário que realizamos para compreender esse setor é que a parcela de cuidadores com treinamento adequado é muito pequena. E o quadro vai ficando cada vez mais sério, uma vez que uma pequena minoria conta com proteções das legislações trabalhista e previdenciária. Esses não são problemas que podem ser resolvidos por uma nova lei. E não se pode esperar que a sociedade crie sistemas de capacitação de cuidadores que venha a atender todos os idosos, estamos muito longe das duas coisas.
O Brasil ainda falha em reconhecer a relevância da economia do cuidado?
De fato. E o maior obstáculo é cultural. O cuidado sempre foi visto como uma obrigação da família, principalmente das mulheres. Só nos últimos anos que as pessoas começaram a perceber que cuidar de alguém — criança, idoso ou doente — é trabalho, é produção e gera impacto econômico. Até hoje, para muita gente, é “ajuda”, “dever da família”, e não trabalho de verdade, com valor. A verdade é que esse cenário mudou: graças à medicina paliativa, as pessoas estão vivendo mais, porém o próprio envelhecimento está tornando as doenças mais complexas. Com isso, as famílias não conseguem mais dar conta sozinhas. Infelizmente, o reconhecimento, na cabeça das pessoas, ainda não acompanhou esse movimento.
Um estudo de 2023 do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) revela que se o trabalho não remunerado com afazeres domésticos e cuidados realizados pelas famílias fosse contabilizado, acrescentaria 13% ao Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Desse total, 65% são tarefas realizadas por mulheres, que dedicam quase o dobro de horas a essas atividades em comparação com os homens, sendo as mais impactadas pela invisibilidade desse trabalho perante a sociedade. Em 2022, segundo o IBGE, elas destinaram, em média, 21,3 horas por semana aos afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas, enquanto eles dedicaram 11,7 horas.
Quais são os principais entraves para a formalização desse trabalho, no contexto brasileiro?
O melhor cenário, geralmente, está ligado às empresas que prestam esses serviços, as quais são capazes de oferecer melhores condições e salário melhor. No caso dos cuidados contratados pelas famílias, prestados em domicílio, a legislação atual determina que esses profissionais sejam regulados pela lei do empregado doméstico. Eles devem cumprir a mesma jornada dos demais empregados, com oito horas diárias, intervalo obrigatório para almoço e descanso mínimo de 11 horas entre as jornadas. Essas regras, modificadas pela emenda constitucional de 2013, ainda não foram plenamente absorvidas nem por trabalhadores, nem por empregadores.
A formalização dos vínculos na economia do cuidado poderia ajudar o equilíbrio financeiro do sistema de Previdência?
Poderia, mas só se criarmos instrumentos flexíveis, porque o trabalho do cuidador abrange muito vínculo intermitente, vários horários, realidades diferentes. É a mesma situação que existe atualmente com o trabalhador de plataforma digital, que não se enquadra na CLT ou no sistema previdenciário convencional.
O sistema atual, muito preso à CLT, não enxerga esse dinamismo. Aqui, é assim: ou se protege com CLT e INSS, ou não se protege com nada. Temos de pensar em sistemas que sejam capazes de cobrir essa complexidade, com modalidades que deem garantia às necessidades fundamentais para todo o tipo de cuidador — não só a quem tenha carteira assinada.
Qual é o papel das empresas e do Estado na profissionalização e na capacitação dos trabalhadores do cuidado?
Sobre o cuidado com a criança, as empresas até têm alguma responsabilidade, porque são obrigadas a contribuir para creche, especialmente quando há negociação coletiva. Isso funciona em alguns setores, mas nem todo mundo consegue bancar. Países da Escandinávia dão exemplo legal, ao criar creches perto das empresas, facilitando muito — inclusive para o empregador, pois a licença pode ser menor, já que a funcionária tem a possibilidade de amamentar o filho no prédio ao lado. Trata-se de uma solução que vai além da simples obrigatoriedade legal.
Agora, aqui, para o idoso, não há lei que obrigue nada — é a Previdência que entra. O importante é pensar em quem cuida e incentivar a pessoa que trabalha nisso a se qualificar.
Pensando no futuro do trabalho do cuidado, diante das tendências demográficas e econômicas no mundo, qual é o maior alerta?
O maior alerta é que a demografia não perdoa. O envelhecimento é certo, vai chegar. Tem exemplos como o do Japão, onde filho idoso cuida de pai ainda mais idoso, e ninguém deu conta de criar um sistema previdenciário que aguente esse tipo de situação em massa, dando assistência para ambos. O obstáculo é enorme, pois vai exigir muita criatividade e adaptação — e não é uma questão a ser resolvida daqui a 50 anos, mas para já.
Em junho, a FecomercioSP realizou o seminário A Economia dos Cuidados: a Situação do Brasil, recebendo especialistas e lideranças corporativas para debater a desigualdade e a informalidade do setor, bem como os caminhos para capacitação de qualidade e uma regulamentação equilibrada. Confira os destaques nas matérias a seguir.
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