Economia
13/10/2025Infância em risco
Mais de 1,3 milhão — esse é o número de casos de violência contra crianças e adolescentes registrado na Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos

Outubro, mês das crianças. Enquanto famílias e escolas celebram a infância, os brasileiros que são o futuro do País precisam de proteção. De janeiro a setembro de 2025, a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos recebeu, por meio do Disque 100, mais de 1,3 milhão de denúncias de casos de violência contra crianças e adolescentes, número que representa um aumento de 7% em relação ao mesmo período de 2024.
A violência contra crianças e adolescentes não é um problema novo, nem exclusivo de uma classe socioeconômica ou região geográfica. Tampouco se restringe ao Brasil. “O Unicef trabalha globalmente pela eliminação da violência, sempre reconhecendo que ela acontece independentemente do contexto, da cultura ou do país. Infelizmente, é um fenômeno que se manifesta em todo o mundo”, afirma Luís Augusto Minchola, oficial de Proteção da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) Brasil, agência da Organização das Nações Unidas (ONU) que defende o direito de crianças e adolescentes. Embora saiba que a violência é fenômeno mundial, o Unicef evita comparações, porque a forma de coleta de dados diverge muito entre as nações, inclusive na categorização do que se configura como violência ou não.
Para entender e combater a violência, a Unicef busca dividi-la em algumas categorias. Uma delas é a violência física, que inclui castigos corporais. Outra é a violência sexual, que, além do estupro, inclui também a importunação sexual ou a exposição a conteúdos inadequados. Há ainda a negligência, quando a criança é abandonada e não recebe os cuidados que necessita, e também a violência psicológica. “Pode ser o bullying e o cyberbullying, mas também testemunhar um ato de violência doméstica contra a mãe, por exemplo, mesmo que a criança não seja agredida fisicamente”, explica Minchola.
Na base da proteção de crianças e adolescentes está a necessidade de quebrar um ciclo de violência intergeracional. “É algo bem documentado. Sofrer violência na infância pode aumentar o risco de envolvimento com a violência na vida adulta, tanto como vítima de novo, com parceiros íntimos e outros, quanto como perpetrador”, explica Joseph Murray, professor de Epidemiologia na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e membro do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI).
Lar inseguro, rua insegura
A violência contra crianças tem causas múltiplas e complexas, mas é possível destacar alguns fatores de risco, aspectos que podem aumentar a probabilidade das ocorrências, embora não as determinem de forma absoluta. Um deles é o nível de estresse ao qual pais e cuidadores estão expostos — quanto mais estressados, mais propensos a praticarem violência. O abuso de substâncias como o álcool também aumenta o risco. “Mas há ainda outros fatores, como ambientes desorganizados no bairro e na sociedade, serviços públicos que não funcionam etc. Tudo contribui para esse ato final da violência”, observa o professor.
Apesar de os diversos tipos de violência ocorrerem em todo o mundo, o Brasil se destaca negativamente em um deles: as mortes violentas intencionais. “Temos uma violência dentro de casa que é profundamente problemática e prevalente, mas não dá para falar sobre violência contra a criança e o adolescente no Brasil e ignorar o impacto dos homicídios de jovens, que normalmente se dão fora do âmbito da casa”, afirma Murray. Segundo números da Unicef Brasil, as vítimas são adolescentes a partir dos 15 anos (91% do total), meninos (90%) e negros (82%).
Uma das dificuldades para fazer comparações, seja do crescimento ao longo do tempo, seja da prevalência entre diferentes regiões, é que as violências contra os mais novos são subnotificadas. “Todos os anos, o Ministério tem recebido mais denúncias que no ano anterior, mas a equipe de coordenação do enfrentamento acredita que esse crescimento se dê por conta de uma maior conscientização da sociedade. Muitas coisas que, antes, eram escondidas ou aceitas passaram a ser denunciadas”, ressalta Pilar Lacerda, secretária nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Segundo dados do Ministério, de janeiro a agosto de 2025, 200.043 crianças e adolescentes foram vítimas de violência no Brasil. Apenas em agosto, dado mais recente, foram 28,33 mil casos, alta de 8,5% em comparação com 2024. A maior parte das ocorrências acontece dentro de casa.
Mesmo que os números sejam alarmantes, Pilar acredita que as pessoas têm, hoje, mais informação, o que é o primeiro passo numa direção melhor. Quanto mais conscientes de quais são as violências e como agir, mais denúncias de casos, antes encobertos, podem ser feitas. “Já são 35 anos de existência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Muitas campanhas foram feitas, as pessoas conhecem o disque-denúncia e a rede de garantias de direitos cresceu”, pondera Pilar. Nada disso, contudo, significa que o País esteja numa posição confortável. “O Brasil tem uma herança violenta, é um país violento, mas nada disso justifica ou pode normalizar a violência contra a criança e o adolescente”, reforça.
Estrutura e conhecimento
A maior conscientização reflete-se nos números, mas não veio acompanhada de um fortalecimento estrutural para o combate à violência infantil. Um dos pontos de atenção atual é fortalecer os conselhos tutelares, oferecendo formação para as equipes por meio de parcerias com universidades, assim como ajudar a melhorar sua infraestrutura. “Como os conselheiros vão trabalhar se não tiverem um computador, se não tiverem um carro para atender às ocorrências?”, questiona Pilar.
O pediatra Marco Antônio Gama, presidente do Departamento Científico de Segurança da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), alerta que, na verdade, o estudo do assunto precisa ser ampliado. “Estamos tentando colocar para a Medicina o conceito de que a violência é uma doença para a vítima — tem história clínica e exames físico, de imagem e laboratorial que são específicos. No entanto, em toda a cadeia que atende a vítima de violência falta informação científica”, aponta.
Segundo o médico, essa formação ajudaria a melhorar a vida dos mais novos no longo prazo. “Quando uma criança pequena é vítima de violência, a decisão de um juiz pode mudar a vida dela, porque é capaz de interromper o atraso nos desenvolvimentos psíquico, físico e neurológico. Mas como ele vai tomar uma boa decisão sem conhecer o tema?”, questiona.
O enfrentamento do problema passa, portanto, pelo aprimoramento das instituições que têm a obrigação de proteger os pequenos. Gama relata, com tristeza, ter presenciado casos de crianças pequenas com comportamentos de não interação semelhantes aos de autistas, sem serem autistas, uma consequência de terem presenciado cenas de violência. E de crianças que voltam repetidamente aos serviços de saúde como vítimas, sem que nada mude. “Tomei conhecimento do caso de uma criança que voltou pela quinta vez ao serviço de saúde. Todo mundo errou”, avalia.
O grande contraponto à violência é o cultivo do afeto, defende o médico. Não basta não bater, não abusar, não expor — é preciso promover relações positivas. “O afeto é importante para os desenvolvimentos psíquico e físico. A ruptura desse afeto, que pode ser causada até pelo excesso de internet, provoca uma desvinculação entre pais e filhos. Sem vínculo, crianças e adolescentes carentes são presas fáceis da violência também fora do lar”, explica.
Mesmo em casos graves de violência, há caminhos de recuperação. O pediatra cita o serviço Dedica, do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que oferece assistência multidisciplinar para a criança e também para membros da família. Até mesmo os agressores recebem ajuda, quando apresentam possibilidade de tratamento. “O Brasil tem uma população muito afetuosa, que precisa ser valorizada. E há medidas factíveis para reduzir a violência, como mostra essa experiência positiva do Dedica”, conclui Gama.
Matéria originalmente publicada no site da Revista Problemas Brasileiros, uma realização da Federação.
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