Economia
05/08/2025Novas fronteiras do crime
À medida que as fronteiras entre legal e ilegal se confundem, organizações criminosas avançam por novos mercados, inclusive lícitos — de combustíveis a ouro —, usando estratégias como evasão fiscal e falsificação de notas fiscais para “limparem” os lucros das mais diversas atividades

Paulo Oliveira*, auditor-fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), circula pelo Brasil há mais de uma década flagrando pessoas envolvidas em relações trabalhistas análogas à escravidão. Ele recorda especialmente de uma operação, em algum lugar de Roraima, há uns dois anos. “Era um garimpo”, conta ele. “Chegamos por uma estrada de terra e entramos na fazenda por uma área de mata. Quando, enfim, avistamos os trabalhadores, eles saíram correndo. Uns cem homens. Achávamos que tinha acabado aquilo, começaram os tiros.”
Eram os criminosos responsáveis pela extração ilegal de ouro da mina objeto da diligência que, ao notarem a presença de policiais, atiraram para assustá-los. “Mas a gente ficou lá, apreendendo materiais, enquanto os disparos continuavam”, afirma Oliveira. A surpresa, porém, veio dias depois: ao juntar documentos distintos, ele observou que a fazenda estava imersa em um circuito de comércio de ouro que extrapolava aquele local. “Do trabalho análogo à escravidão lá na ponta, o ouro vira uma joia caríssima em shoppings do Rio de Janeiro e de Brasília”, revela outro auditor, que pediu para não se identificar.
Relatos como esse ajudam a entender como o crime organizado não só mantém uma estrutura burocrática racionalizada — tal como uma empresa de grande porte —, como também é riquíssimo. Em 2022, segundo um relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os grupos que o operam tiveram uma receita bruta de mais de R$ 146 bilhões em cadeias produtivas que variam entre o legal e o ilegal, de produtos como combustíveis e lubrificantes — responsáveis por quase metade do faturamento total (42%) —, bebidas, tabaco e, claro, ouro.
Para se ter uma ideia, o faturamento com a venda de cocaína foi de “apenas” R$ 15 bilhões em 2022, segundo a publicação World Drug Report, do Escritório sobre Drogas e Crime da Organização das Nações Unidas (ONU). Ou, ainda a título de comparação, o valor é menor do que o total das receitas, em 2024, do segmento de vestuário e calçados no Estado de São Paulo, principal mercado do País, de acordo com números da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). No ano passado, essas lojas faturaram R$ 109 bilhões.
O crime organizado também ganhou mais dinheiro do que setores relevantes do varejo paulista, como o de materiais de construção (R$ 114,8 bilhões) ou farmácias e perfumarias (R$ 134,8 bilhões). O relatório do FBSP ainda revela outro montante, de pouco mais de R$ 186 bilhões, oriundo de golpes digitais e crimes envolvendo smartphones. No total, calcula o fórum, o crime faturou R$ 348 bilhões no Brasil em 2022.

Para especialistas ouvidos pela Revista Problemas Brasileiros (PB), na medida em que ilegal e legal são fronteiras tênues, cruzadas a todo momento, essas categorias nem sempre podem ser producentes para compreender um fenômeno tão complexo. “De um lado, elas dizem respeito a um caráter mais normativo, jurídico, do que empírico”, pontua a socióloga Isabela Vianna Pinho, doutoranda em Sociologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “Mas, por outro lado, é óbvio que, quando alguém define o que é ilegal e legal, tem efeitos práticos na vida das pessoas envolvidas”, completa. Segundo ela, é fato que o crime precisa de atividades legais para funcionar, já que o dinheiro proveniente das atividades ilegais precisa ser lavado. “Mas também é verdade que muitas atividades legais precisam do crime para seguir operando. Nesse sentido, as categorias jurídicas perdem força”, compara.
Isabela exemplifica seu argumento com os dados do estudo internacional “Carros globais: uma pesquisa urbana transnacional sobre a economia informal de veículos”, coordenado pelo sociólogo Gabriel Feltran, professor na Urban School Sciences Po, uma das universidades mais prestigiadas do mundo, em Paris, na França. Isabela é uma das investigadoras do projeto, que se debruça sobre esse imenso mercado que cruza fronteiras diversas, das jurídicas às transnacionais — o de automóveis roubados.
Dentre os achados da pesquisa, está, justamente, o de que certos produtos, como carros, circulam, em momentos distintos, entre o legal e o ilegal. “Até ser roubado, o veículo está legalizado. Tem documento, seguro, um dono etc. Quando roubado, perde essa condição e se torna objeto de um crime. É aí que podemos falar de caminhos distintos. Ou esse carro retorna para circuitos completamente legais — se achados pela polícia, por exemplo, são leiloados, virando recursos para a seguradora —, ou seguem na ilegalidade, quando são vendidos em desmanches. São relações muito intricadas”, pontua.
Reluz (e é ouro)
O ouro é especialmente abordado em relatórios sobre crime organizado, porque, além de se fundamentar nessa mesma lógica, ainda envolve uma série de outras repercussões sociais — parte relevante dos garimpos brasileiros está na Amazônia e o esforço para extraí-lo envolve, inevitavelmente, a destruição do meio ambiente. O mercúrio utilizado pelos garimpeiros para limpar a terra, deixando apenas o metal puro, contamina o leito dos rios e, por consequência, prejudica a saúde dos povos ribeirinhos.
Segundo estimativa do Instituto Escolhas, entre 2018 e 2022, aproximadamente 185 toneladas de mercúrio circularam nos garimpos amazônicos. Novamente, a fronteira entre legal e ilegal: ele é adquirido na Bolívia, que, por sua vez, importa-o de outros países produtores, sobretudo para oferecê-lo aos garimpeiros da região. Em 2020, cerca de 75% de todas as importações desse metal demandadas na América do Sul foram operacionalizadas por bolivianos.
Na análise de Pery Shikida, especialista em economia do crime e professor na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), esses números reforçam um argumento multifacetado, mas validado a cada nova pesquisa que ele — e vários outros estudiosos do tema — fazem: o crime compensa economicamente. “O objetivo da sociedade deve ser tornar nulo o retorno lucrativo da empresa criminosa. Isso aumenta o risco dessa atividade”, escreveu o especialista, em um dos seus artigos mais recentes. “Na verdade, os incentivos econômicos dados aos players desses mercados são, hoje, extremamente vantajosos no Brasil”, continua ele, em entrevista à PB. “Em São Paulo, por exemplo, crimes econômicos geram uma renda 13 vezes maior do que o trabalho formal, por exemplo. Considerando a busca por dinheiro, isso é muita coisa”, ressalta.
A afirmação central dos estudos de Shikida tem base na equação formulada pelo economista estadunidense Gary Becker, ainda na década de 1960, criada justamente para calcular respostas sobre as vantagens de entrar no crime. A conta considera desde custos materiais, como os necessários para executá-lo, até intangíveis, como a expectativa do valor da punição, caso esta ocorra.
Crime que compensa
Em 2017, em um estudo produzido a partir de entrevistas em penitenciárias localizadas no Estado do Paraná, Shikida descobriu, por exemplo, que 75% dos detentos consideravam que estavam em vantagem econômica com os delitos cometidos. “Isso prova, de forma lamentável, que o crime, quando lucrativo, segue compensando no Brasil”, pondera o pesquisador. E explica também, na sua percepção, o esforço do crime em legalizar suas atividades. Na medida em que a legalidade fica na ponta da cadeia produtiva, os recursos envolvidos ou esperados são sempre elevados. “E, aí, não tem jeito. Como muitos jovens não trabalham ou mesmo não têm condições de base, como apoio familiar, a atividade criminosa é uma oferta de ascensão, ou nem isso — é a saída da situação de pobreza mesmo”, resume.
Shikida adiciona, ainda, outro fator relevante: as punições para crimes que envolvem mercados ilícitos são mais brandas do que para crimes associados ao tráfico de drogas ou de armas, por exemplo. “Penas por sonegação, contrabando e fraudes são muito menores, às vezes até reversíveis.” Ele cita o mercado de cigarros. “É um contrabando muito aprazível. O ganho é pesado, há uma demanda enorme e, quando o criminoso é preso, a pena é por evasão de divisas que, muitas vezes, se direciona à facção, não ao indivíduo. É muito diferente de um traficante de drogas”, observa.
Tudo isso sem contar que, no Paraná, região que Shikida estuda, a chance matemática de sucesso ao contrabandear cigarros é de 95%. “Se você considerar que os produtores entregam quase 21 bilhões de unidades por ano e que, na contramão, o governo aumentou os impostos do mercado formal, ficou ainda mais lucrativo [para os criminosos]. As instituições, que deveriam proteger mercados lícitos, ajudam a deteriorá-los”, aponta.
No rastro do ilegal
Há um consenso entre os especialistas sobre porque é tão difícil travar toda essa estrutura. O mais significativo é, de fato, a dificuldade de rastrear esses produtos. “Depende muito de cada mercado. Há controles a partir de selos de legalidade, que funcionam no caso dos cigarros. Os combustíveis, por sua vez, têm um sistema de marcação em outros países, para os casos de descoberta de adulteração.
A rastreabilidade do ouro é mais complexa, porque depende de técnicas isotópicas, mas que já são aplicadas no Brasil”, informa Nívio Nascimento, assessor de Relações Internacionais do FBSP, citando, especialmente, o Programa Ouro Alvo, da Polícia Federal. Além disso, há ainda o desafio da integração de dados, tanto entre as instituições do País — como Receita Federal e polícias — quanto entre diferentes atores dos Estados. “Deve haver a conivência de setores e de esferas de poder. Não é possível”, afirma Shikida, embora ele mesmo não tenha dados sólidos sobre isso. O especialista começará a estudar o contrabando de combustíveis em um novo projeto a partir deste ano.
O domínio sobre territórios — como vivenciou o auditor-fiscal — é mais um fator da complexa equação que interliga atividades legais e ilegais, já que grupos criminosos conseguem controlar as áreas nas quais as mercadorias são extraídas ou escoadas, sem serem desafiados pelo Estado. Essa é uma questão particularmente relevante na Amazônia, onde, além da extração de ouro, os rios são usados por facções para o transporte, seja do próprio ouro, seja, ainda, de drogas e armas. “Nos lugares onde a presença estatal é nula, os criminosos chegam a controlar serviços básicos, como o transporte das pessoas nas cidades”, explica Nascimento, do FBSP.
Pesquisas mais recentes, no entanto, têm encontrado cada vez mais inovações em todos os processos que envolvem o crime organizado. Uma delas é o fato de as penitenciárias terem se tornado “hubs de articulação” das facções criminosas. “Os presídios sempre foram fonte de recrutamento de ‘trabalho’ no Brasil, mas, atualmente, não são somente isso; essas organizações transformaram as prisões em espaços de articulação de tudo o que acontece nas ruas”, destaca Nascimento.
Segundo ele, muitos estudos já apontam que a política de prisões federais é uma das explicações para a expansão das principais fações do País — o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) —, de seus Estados de origem (Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente) para outras regiões, especialmente a Norte e a Nordeste. “Os massacres nas rebeliões de presídios no Norte, em 2019, não foram mais do que consequência de disputas por esses mercados”, indica.
Limpando o crime
O FBSP elencou, em seu relatório, como as estratégias do crime organizado afetam os mercados, principalmente diminuindo os custos finais, mas deixando rastros de violência pelo caminho. Os produtos, quando não são extraídos de territórios controlados, têm notas fiscais falsas emitidas — caso das bebidas e do tabaco — e circulam em fluxos que envolvem desde os próprios criminosos até atores institucionais, como controles alfandegários.
Outro elemento que torna o cenário emaranhado é a interdependência entre o elemento territorial, violento e cotidiano para as populações, e o institucional, em que os grupos criminosos conseguem acessar dispositivos de órgãos públicos, como parlamentos, tribunais ou empresas legalizadas. Servem, dizem os especialistas, para limpar os lucros dos mercados ilícitos e, em paralelo, atrapalhar o processo de investigação.
O exemplo mais nítido dessa estratégia foi revelado no ano passado, quando o Ministério Público denunciou que empresas responsáveis por linhas de ônibus da zona sul da capital paulista eram, na verdade, intermediárias do PCC para lavar dinheiro do grupo. A gravidade foi maior porque, nesse caso, ambas — Transwolf e UPBus — ainda receberam recursos da própria prefeitura. Isabela, da UFSCar, lembra que, de fato, o crime prejudica setores da economia quando consegue legalizar as suas práticas. “Há muitos membros de facções criminosas que também são donos de transportadoras. E, aí, entra, de novo, a complexidade do legal e do ilegal: o tráfico de cocaína acontece muito por essa rede logística que, no limite, é legalizada”, detalha a pesquisadora.
Entretanto, o estímulo para as ações de legalidade do crime pode ter uma raiz, digamos, mais existencial: viver. “Ouço muito isso dos detentos”, conta Shikida, da Unioeste. “Se um criminoso ficar na rua, ele tem cerca de 25 anos de expectativa de vida, que aumenta se ele for preso. Mas essa pessoa quer tranquilidade, e não viver no perigo. Administrar um posto de gasolina ou contrabandear cigarro é um jeito de tornar isso possível”, conclui.
*nome fictício para preservar a identidade do entrevistado.
Matéria originalmente publicada no site da Revista Problemas Brasileiros, uma realização da Federação.
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