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Editorial

Reforma Tributária acelerada: reflexões sobre o risco da pressa constitucional e o acerto de um modelo propositivo

Causa preocupação que uma mudança de tamanha relevância tenha sido aprovada sem um debate mais amplo com a sociedade civil e o setor produtivo

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Reforma Tributária acelerada: reflexões sobre o risco da pressa constitucional e o acerto de um modelo propositivo
Halley Henares e Ives Gandra Martins (Arte: TUTU)

*Por Ives Gandra Martins e Halley Henares

A Emenda Constitucional (EC) 132, que concretiza a tão aguardada Reforma Tributária brasileira, foi aprovada com notável celeridade. Embora traga consigo a promessa de simplificar e modernizar o sistema tributário nacional, a condução de sua tramitação suscita preocupações relevantes quanto ao amadurecimento do debate e à capacidade institucional de absorver mudanças de tamanha magnitude em prazo tão exíguo.

Desde a EC 18, de 1965, que estruturou o sistema tributário sob o regime militar, o Brasil convive com conceitos que, apesar de formalmente vigentes, jamais foram totalmente esclarecidos pelos tribunais. A própria Constituição Federal de 1988, que renovou o pacto federativo e consolidou o Sistema Tributário Nacional (STN), ainda contém dispositivos cuja interpretação permanece em disputa no Supremo Tribunal Federal (STF), mesmo após mais de três décadas da sua promulgação.

Nesse contexto, e diante das acaloradas discussões que o tema da reforma suscita entre juristas e acadêmicos, preocupa o fato de que uma alteração de tamanha envergadura tenha sido aprovada sem um debate mais profundo com a sociedade civil, o setor produtivo, operadores do Direito e entes federativos. O novo modelo, inicialmente concebido como Imposto sobre Valor Agregado (IVA) nacional e, posteriormente, transformado em IVA dual, carrega consigo uma série de complexidades adicionais em matéria de produção e interpretação legislativa, arrecadação e contencioso. Resulta não apenas na substituição de tributos, mas também em uma mudança paradigmática na forma de tributar o consumo, com impactos sistêmicos sobre a economia e sobre a própria arquitetura jurídico-constitucional — sobretudo no novo conceito de pacto federativo, agora submetido a pressões endógenas (nova repartição de competências tributárias) e exógenas (potenciais repartições de competências jurisdicionais, entre Justiça Federal e varas estaduais de Fazenda Pública, no que diz respeito ao contencioso judicial).

A experiência histórica brasileira demonstra que normas tributárias mal compreendidas geram contenciosos intermináveis, insegurança jurídica e elevação de custos econômicos. Quando conceitos básicos como os de valor adicionado, não cumulatividade e destinação da receita ainda suscitam interpretações conflitantes nos tribunais administrativos e judiciais, é razoável questionar se o momento seria mais propício à reforma ou à consolidação institucional. Mais importante do que a velocidade na promulgação é a necessidade de consistência normativa, previsibilidade e segurança jurídica. A ausência de um período adequado de discussão pode comprometer justamente esses objetivos. As etapas de regulamentação e implementação, já em curso, tornam-se ainda mais sensíveis diante da falta de amadurecimento técnico do texto constitucional.

A Emenda 132 representa, sem dúvida, uma mudança relevante. Contudo, é fundamental reconhecer que a pressa raramente é aliada de uma boa técnica legislativa. Reformar um sistema complexo exige mais do que vontade política — requer compreensão histórica, escuta ativa e compromisso com a construção de um futuro tributário mais transparente e justo para todos os brasileiros.

Neste momento, mais do que defender ou criticar apaixonadamente a Reforma Tributária, é preciso analisar de forma ponderada as mudanças propostas e já realizadas no STN, atentando para pontos de possível complexidade de ordens pragmática e teórica que se apresentam.

É necessário, portanto, que o Congresso Nacional, os tribunais superiores e a sociedade acompanhem com senso crítico e responsabilidade a implementação dessa reforma. O diálogo precisa (e deve) ocorrer nas leis complementares, nos regulamentos e na prática institucional, sempre buscando estabilidade, isonomia e funcionalidade do sistema. Ainda há tempo. Com a nova ordem jurídica posta pela EC 132/23, o cenário de polarização entre defensores e detratores da reforma deve ceder espaço a uma abordagem critica, construtiva e propositiva. Acadêmicos, juristas, advogados, economistas e demais profissionais do Direito devem unir esforços nessa missão, que não é fácil, mas necessária. A reforma não pode, como ocorre com frequência no Brasil, ser meramente judicializada; precisa ser debatida, explicada, ajustada e, quando necessário, corrigida. O contribuinte não pode mais ser sobrecarregado ou prejudicado, seja pela complexidade da tributação, seja pelo aumento da litigância tributária.

Uma das possíveis complexidades a serem enfrentadas refere-se às alíquotas do IBS, uma vez que Estados e municípios poderão fixar as próprias alíquotas sem vinculação obrigatória à alíquota de referência estabelecida por resolução do Senado Federal. Essa possibilidade pode resultar em uma nova configuração da chamada guerra fiscal entre os entes federados, inclusive de cunho regional, movimento que merece atenção redobrada. Além disso, esse cenário contraria o ideal de simplificação e neutralidade buscado pela reforma, visto que a proliferação de alíquotas diferenciadas nos diversos Estados e municípios, indubitavelmente, gerará mais complexidade para os contribuintes no momento do recolhimento dos tributos.

Outro ponto que merece reflexão refere-se à abrangência das funções atribuídas ao Comitê Gestor do IBS. Esse órgão será responsável por editar regulamentos; uniformizar a interpretação e a aplicação do imposto; e proceder à arrecadação, à compensação e ao repasse de receitas, além de decidir sobre o contencioso administrativo. Essas competências amplas exigem uma clara delimitação de poderes, bem como salvaguardas para os contribuintes. Destaca-se, nesse sentido, o PLP 108/24, que trata do Comitê Gestor e limita os julgadores administrativos aos termos da legislação expedida pelo próprio órgão, o que pode afrontar princípios constitucionais, como a legalidade, o contraditório e a ampla defesa.

Outro aspecto relevante é a definição de como será disciplinado o contencioso administrativo e judicial referente aos novos tributos, considerando a coabitação entre um imposto federal (a CBS) e um imposto estadual e municipal (o IBS) com os mesmos fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência, sujeitos passivos com competência de arrecadação e fiscalização compartilhada entre União, Estados e municípios. Dessa forma, é essencial definir adequadamente a quem caberá o julgamento das autuações realizadas pelas diferentes administrações tributárias, tanto na esfera administrativa quanto na judicial, prevenindo conflitos de interpretação e aplicação da lei. Soma-se a isso a necessidade de assegurar a segurança jurídica diante da possibilidade de entendimentos divergentes entre órgãos como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e o Comitê Gestor do IBS, o que poderia resultar em interpretações distintas de conceitos jurídicos indeterminados (“operações”, “prestações”, “destino”) e princípios gerais de Direito Tributário enfeixados em cada caso concreto — gerando soluções diferentes para casos equivalentes e burlando os princípios da isonomia e da unidade sistêmica pretendidos com a adoção de um novo IVA, ainda que de natureza dual.

Vale ainda ressaltar, dentre outros pontos de atenção, a criação de diversos regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação, o que representa um afastamento dos princípios de simplicidade e da uniformidade pretendidos pela reforma. Embora tenham sido extintos incentivos fiscais e subvenções, multiplicaram-se microssistemas tributários (abrangendo setores como Infraestrutura, Transporte, Construção Civil, Óleo e Gás, entre outros), cada qual com regras próprias de suspensão, creditamento de exportação e alíquotas diferenciadas.

Essas são algumas reflexões sobre a ampla Reforma Tributária proposta pelo governo de maneira apressada, motivando a exposição de questões pragmáticas e teóricas, entre tantas outras que a sociedade deverá enfrentar daqui por diante, na busca plural por alternativas viáveis ao ordenamento constitucional tributário. Há, nesse debate, um trinômio indissociável: finalidade, meios e tempo. A finalidade proposta pela EC 132/23 — de simplificar a tributação no Brasil — deve ser o norte de sua interpretação, mesmo que os meios eleitos, cujos desafios aqui destacamos, não demonstrem, por ora, simplicidade ou adaptação suficientes. O tempo para a sua concretização deveria ser mais dilatado, permitindo uma maturação do debate em bases técnicas e plurais. Resta saber se ainda há tempo.

Ives Gandra Martins, jurista e presidente do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP); 

Halley Henares, integrante do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP e presidente da Associação Brasileira de Advocacia Tributária (Abat).

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