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Legislação

Modelo uruguaio de regulação do trabalho em plataformas oferece alternativas ao Brasil

Combinação de direitos básicos, transparência algorítmica e regras específicas para autônomos e subordinados foram as opções da nação vizinha para superar impasses laborais

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Seminário discute o mundo do trabalho na era dos algoritmos Seminário discute o mundo do trabalho na era dos algoritmos
Seminário discute o mundo do trabalho na era dos algoritmos

Mundo afora, a discussão sobre o trabalho nas plataformas digitais quase sempre descamba para um viés binário que busca enquadrar motoristas e entregadores como “empregados” ou “autônomos”. Essa polarização dificulta a construção de consensos e acaba atrasando a garantia de uma proteção mínima a esses trabalhadores. Mas há nações que já compreenderam que, se por um lado, não faz sentido engessar os novos arranjos laborais com as rédeas do passado; por outro, tampouco é possível deixar essas pessoas totalmente desprotegidas — pois elas se acidentam, não podem trabalhar ininterruptamente e vão envelhecer. É justamente aí que se abre espaço para um meio-termo nesse dilema.

O Uruguai fez um esforço nesse sentido. Em vez de tentar enquadrar de imediato todos os casos em uma única categoria, o país optou por construir um conjunto mínimo de proteção que se aplica a quem trabalha via aplicativo — e, a partir daí, diferenciar regras para autônomos e subordinados, visando atacar a precariedade. O curioso é que, no país vizinho, houve uma combinação de duas visões de naturezas distintas sobre o tema: uma lei aprovada nos últimos dias de um governo de centro-direita, no início de 2025, e um decreto regulamentador editado pelo governo de centro-esquerda que o sucedeu, crítico à lei.

“A norma uruguaia de 2025, complementada por decreto, foca em motoristas e entregadores e não define de antemão se são autônomos ou subordinados, mas cria um piso de proteção comum e orienta os juízes a seguirem a cláusula 13 da Recomendação 198 da OIT [Organização Internacional do Trabalho] na hora de resolver litígios [para ajudar a definir o vínculo empregatício e garantir proteção, mesmo em situações contratuais complexas]”, enfatizou Juan Raso Delgue, professor na Universidad de la República (Uruguai). 

Delgue apresentou os detalhes durante o seminário O Mundo do Trabalho na Era dos Algoritmos: Desafios Econômicos e Jurídicos, realizado em novembro pelo Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).

Direitos básicos para todos os trabalhadores de plataforma

A parte mais inovadora da legislação, na visão de Delgue, está nas regras que valem para todos os trabalhadores de plataforma, sejam autônomos, sejam subordinados. Veja a seguir.

Transparência algorítmica e informação sobre monitoramento e rastreamento: as empresas devem informar os trabalhadores sobre os sistemas automatizados que utilizam, como rastreamento por GPS e outras ferramentas de controle. É um passo em direção à transparência, ainda que, reconhece o professor, esse direito dependa de como será aplicado na prática. 

Proteção à reputação digital: a lei garante o direito à inviolabilidade da reputação digital, permitindo que o trabalhador busque reparação judicial se sua avaliação ou histórico digital for usado de forma abusiva. Não se pode simplesmente “marcar” alguém como bom ou mau trabalhador e manter esse rótulo sem possibilidade de contestação. 

Medidas de segurança obrigatórias: plataformas passam a ter o dever de adotar medidas de segurança para todos que prestam serviços, não apenas empregados formais. Isso é fundamental para categorias altamente expostas a riscos, como os entregadores. 

Direito à explicação sobre decisões que afetem o trabalho: sempre que a empresa tomar decisões que impactem significativamente as condições de trabalho — como bloqueios ou desligamentos —, o trabalhador terá direito a uma explicação, inclusive quando a decisão decorre de sistemas automatizados. 

Jurisdição nacional garantida: contratos não podem empurrar os conflitos para arbitragens em outros continentes, como na Europa. Para quem atua no país, prevalece sempre a competência da jurisdição nacional, evitando que motoristas e entregadores tenham de recorrer a instâncias inacessíveis no exterior. 

Instalações de bem-estar: as plataformas devem oferecer “serviços de bem-estar”, isto é, locais onde trabalhadores possam comer, beber água, usar o banheiro e estacionar veículos, bicicletas ou motos. É uma resposta direta à realidade de quem passa horas nas ruas sem qualquer estrutura de apoio.

Para os autônomos, a legislação buscou garantir direitos, como seguro contra acidentes e doenças ocupacionais, inscrição obrigatória na seguridade social e na liberdade sindical, inclusive para negociação coletiva. 

Já para os trabalhadores subordinados que atuam nas plataformas, a jornada máxima é de 48 horas semanais, e o tempo de trabalho contado do momento que o empregado se conecta ao aplicativo até a hora que se desconecta. Por fim, a lei conclui com a fiscalização, atribuindo competências especiais ao Ministério do Trabalho local para inspeção disso tudo. 

Segundo Delgue, a combinação entre direitos gerais, regras específicas para subordinados e garantias próprias para autônomos destaca o Uruguai no debate internacional. “É importante ter em mente que a economia de plataforma, que nós por vezes imaginamos como motoristas e motoboys, é muito mais extensa. Hoje existem plataformas de qualquer gênero. Não sabemos como será o futuro contrato de trabalho, nem mesmo no âmbito da OIT. Para mim, o caminho será a não distinção entre independente e subordinado. O risco, hoje, é que os convênios internacionais de trabalho criem mais incertezas do que pretendem resolver”, ponderou.

A situação brasileira

Para Gisela Freire, advogada trabalhista e sindical e integrante do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da FecomercioSP, a legislação uruguaia é um marco regulatório importantíssimo para a América Latina — e, em especial, para o Brasil, que tarda em editar uma lei para regular o trabalho em plataformas e os aspectos ligados à Inteligência Artificial (IA). “A lei uruguaia busca aplicar o princípio da primazia da realidade: faz-se uma análise caso a caso, respeitando a autonomia formal onde houver, mas garantindo proteção tanto no trabalho autônomo quanto no subordinado.”

Na comparação internacional, a advogada observou que o Uruguai é mais adaptável do que a diretiva europeia, que praticamente presume a existência de vínculo de emprego e transfere às plataformas o ônus de provar o contrário. 

Já o Brasil seguiu outro caminho com o Projeto de Lei Complementar (PLP) 12/2024. Parte da premissa de que o trabalhador de plataforma é autônomo, mas, na prática, cria uma categoria intermediária, com algumas garantias (como contribuição previdenciária compartilhada e ganhos mínimos). Contudo, de acordo com Gisela, o projeto tem duas questões bastante sensíveis: mantém um controle intenso das plataformas sobre o trabalho, mas não prima pela transparência algorítmica; o resultado é a crítica quanto à vulnerabilidade do motorista. 

No Brasil, pela lógica jurídico-formal da legislação sindical, os trabalhadores autônomos são enquadrados como categoria econômica (e não como categoria profissional). É o caso de caminhoneiros e taxistas, que negociam diretamente com entes públicos e privados temas como tarifas e condições de exercício da atividade. O PLP 12/2024 rompe parcialmente com essa lógica ao prever, especificamente para motoristas de aplicativo de transporte de quatro rodas, a criação de uma categoria profissional própria, o que tende a redesenhar a forma de representação sindical desse grupo. 

“É um contrassenso, mas, na minha opinião, é importante que isso aconteça, porque, se estamos falando de polos contrapostos — plataforma e motorista —, não dá para ter duas categorias econômicas discutindo. Deve haver uma econômica e uma profissional, e a legislação vai precisar se adaptar a essa nova realidade de trabalho e de representação”, complementou. Com base em pesquisas recentes, Gisela lembrou que, em 2024, o Brasil já contava com cerca de 1,7 milhão de motoristas de aplicativo e 450 mil entregadores. Desse universo, 63% trabalham mais de 40 horas semanais. São jornadas extensas e uma dedicação que se aproxima de uma função em tempo integral — e 60% deles não tinham outro emprego formal.

“Outro dado revela que cerca de 75% dos motoristas e entregadores suportam sozinhos os riscos da atividade”, destacou. “Não só em relação à locação do veículo, como também às questões de saúde e às necessidades específicas para desenvolver a atividade. Isso representa uma pressão econômica expressiva sobre esses trabalhadores e precisa ser tratado de alguma forma, seja por lei, seja por negociação coletiva.”

Diante disso, Gisela concluiu que a experiência uruguaia mostra um caminho possível: conciliar proteção social e tecnologia, com transparência algorítmica. “A solução brasileira precisará sair do modelo binário empregado/autônomo e caminhar para uma terceira categoria, que dê previsibilidade ao negócio sem abandonar a proteção de quem vive do trabalho por aplicativo.”

A subordinação é uma só

Maria Cristina Mattioli, desembargadora aposentada, advogada e também integrante do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da FecomercioSP, acredita que o debate sobre plataformas não se resolve apenas perguntando se há (ou não) vínculo de emprego, nem reduzindo tudo à expressão “subordinação algorítmica”, assunto também tratado no âmbito do seminário. Ela aproxima o tema de discussões mais amplas sobre digitalização, Inteligência Artificial (IA) e gestão por algoritmos, que já motivam estudos do Parlamento Europeu e de grandes universidades. 

Tanto Gisela quanto Maria Cristina enfatizaram que um dos caminhos é discutir o marco legal da IA concomitantemente ao PLP do trabalho por aplicativo. “O que nós precisamos é de uma definição geral — seja do Supremo, seja do Congresso — que integre IA e gerenciamento por algoritmo para que não tenhamos decisões divergentes sobre o mesmo modelo de plataforma em lugares diferentes do País”, ponderou Maria Cristina.

Isso será fundamental para decidir se o algoritmo deve ser entendido como uma ferramenta de gestão que substitui decisões humanas por decisões automatizadas, e se, nesse contexto, a subordinação permanece a mesma. 

“Eu não gosto do termo subordinação algorítmica, porque entendo que o algoritmo é uma ferramenta”, afirmou. “Dentro do nosso modelo, eu não posso caracterizar [o autônomo] como empregado porque falta um elemento, justamente a subordinação. E esta é uma só: pode ser exercida por um humano ou por uma máquina”, concluiu a desembargadora.

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