Editorial
07/07/2025O amanhã ameaçado: reformas e novas formas de financiamento estão entre as sugestões para estimular a formalização e elevar as contribuições
Contas públicas no vermelho, as mudanças na demografia com o envelhecimento da população e a queda no número de contribuintes, e a descrença na eficiência dos governos cobram um preço alto sobre a Previdência Social

A sustentabilidade do sistema de Previdência é um problema estrutural de longo prazo, com consequências diretas no equilíbrio fiscal e na proteção social da população. Uma preocupação que não é exclusividade do Brasil. Além da mudança da pirâmide demográfica, consequência do envelhecimento da população e da baixa taxa de natalidade, outro aspecto passou a chamar a atenção dos especialistas em Previdência: a informalidade. Apesar da leve redução, de 38,7% para 38,1%, registrada na medição mais recente (no trimestre finalizado em fevereiro de 2025) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ainda são 39,1 milhões de trabalhadores sem carteira assinada no País. “A informalidade é muito alta e não vemos uma tendência de recuo”, alerta Luís Eduardo Afonso, professor na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP).
“A informalidade de hoje vai ter impacto amanhã. A estrutura de proteção social tem de estar interligada, porque, quando a pessoa envelhece ou sofre um acidente, não podemos deixar de atendê-la.” Luís Eduardo Afonso, professor na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP)
A expectativa é que piore, segundo Afonso, pois a taxa segue elevada mesmo depois de um ano positivo para a economia, com pleno emprego e mercado de trabalho aquecido. “Muita gente segue fora da estrutura de proteção. Para os próximos anos, com uma tremenda incerteza em que o mundo foi jogado em decorrência das ações dos Estados Unidos, o que vai acontecer? Não sabemos, mas penso que não vem coisa boa”, lamenta. As mudanças no mundo laboral, marcadas por alterações no perfil das ocupações oferecidas no mercado formal e pelo crescimento do número de profissionais autônomos, somadas a uma certa desconfiança das pessoas com o Poder Público, aumentam o índice de pessoas trabalhando sem carteira assinada — o que acaba restringindo as contribuições para a Previdência Social, não apenas pelo volume de quem contribui, mas também pelos valores aportados no sistema. Outro motivo — que gera debate entre os especialistas — é a hipótese de que programas sociais, como o Bolsa Família, afastem os trabalhadores das ocupações formais. O fato é que o equilíbrio entre manter o tecido de proteção social e tornar o modelo sustentável é um dos maiores obstáculos da política pública brasileira. Para enfrentá-lo, é necessário estimular a formalização e elevar as contribuições de autônomos com maior renda.
A despeito do mercado de trabalho aquecido, com desemprego no menor patamar da série histórica do IBGE (6,6%, em 2024), as condições das vagas oferecidas no regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não despertam o interesse das pessoas, fazendo com que parte dos trabalhadores migre para posições autônomas. A informalidade também é a solução para quem não consegue uma colocação formal. Há, ainda, uma faixa relevante da força de trabalho, qualificada e de renda mais alta, contratada para prestar serviços como Pessoas Jurídicas (PJs) prática chamada de “pejotização”. Nesse caso, há a contribuição para a Previdência, mas num valor inferior — geralmente com base em um salário mínimo — ao esperado, diante da renda real obtida com o trabalho.
Por esses fatores, a informalidade restringe a contribuição e agrava o déficit da Previdência Social, que alcançou R$ 304,6 bilhões no ano passado — 2,52% do Produto Interno Bruto (PIB). “O desemprego está baixo para padrões históricos, mas a taxa de 7% significa 7 milhões de pessoas em busca de emprego. Haverá empregos ruins, de baixa remuneração, competindo com benefícios sociais. E haverá demandas por ocupações mais qualificadas sem encontrar pessoas com as novas qualificações requeridas”, opina o economista José Cechin, diretor-executivo da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) e ex-ministro da Previdência e Assistência Social.
“O Brasil está encalacrado na questão da informalidade por causa da falta de flexibilidade do trabalho com registro. O custo do trabalho formal atua como indutor da informalidade.” José Pastore, sociólogo, especialista em relações do trabalho e presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da FecomercioSP
Na avaliação de Cechin, o alto custo de manter um emprego com registro em carteira é a principal causa da informalidade. “O custo para o empregador chega a 102% do salário, é muito caro”, afirma. De acordo o sociólogo José Pastore, presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), o Brasil está “encalacrado” na questão da informalidade, por causa da falta de flexibilidade oferecida pelo trabalho com carteira assinada. “O custo do trabalho formal atua como indutor da informalidade. Com uma carga tão alta, o empresário, sobretudo o de pequeno porte, arrisca e contrata na informalidade”, pontua.
Pastore argumenta que o Brasil segue na contramão dos países em desenvolvimento que adotam metodologias mais leves de contratação, citando o caso dos empregados domésticos a partir de 2013, quando foi aprovada a PEC das Domésticas. “O que aconteceu na prática? Muitas famílias dispensaram as empregadas mensais, registradas e formalizadas, e contrataram diaristas, na informalidade”, recorda. Na época, havia 1,9 milhão de trabalhadores domésticos com carteira assinada. Em 2022, esse número caiu para 1,5 milhão, segundo o IBGE.
Novo trabalho, novo trabalhador
A vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), Rafaela Cosme, chama a atenção para a mudança drástica no perfil social do trabalho. Ela destaca que, até algum tempo atrás, o emprego era talvez o dado mais marcante na personalidade pública de alguém, com uma forte identificação dos funcionários com a empresa e os colegas. “Hoje, empregos duradouros são cada vez mais raros, a terceirização ganha espaço e a relação de emprego é substituída pela ‘pejotização’”, afirma.
Afonso, da FEA-USP, destaca que há tempos o trabalho com vínculo em carteira, proteção social, férias e décimo terceiro salário vem perdendo importância. “A chamada ‘uberização’ [trabalho informal, flexível e sob demanda] da economia é um fenômeno cada vez mais expressivo, que nenhum governo pode deixar de atentar, mas para o qual nenhum país tem uma boa resposta”, pondera. Na visão do especialista, a precarização das relações laborais talvez seja o maior desafio de todas as estruturas de proteção social no mundo contemporâneo. “Não conseguimos solucionar os problemas tradicionais da economia e estamos muito pouco preparados para as questões dessa nova economia, que avança a passos rápidos. Como fica a questão da contribuição e da proteção social desse trabalhador?”, indaga. Na visão de Pastore, estamos assistindo a uma certa recusa de uma parcela de profissionais a contribuir para sistemas previdenciários. “A maior parte desse contingente é formada por jovens que acham que não vão ficar velhos e não querem contribuir. Por outro lado, os sistemas para contribuir como autônomo são caros”, aponta. Para além do surgimento de novas formas de trabalho, o sociólogo lembra da criação do Microempreendedor Individual (MEI), que é formalizado e contribui para a Previdência Social.
Pastore enxerga, no entanto, dois problemas nessa figura jurídica criada em 2008: a contribuição muito reduzida, insuficiente para pagar até um salário mínimo na aposentadoria, e a grande inadimplência. “O que acontece com esse profissional autônomo? Quando há trabalho, ele contribui, mas quando não há, não contribui — o que causa um buraco nas contas da Previdência”, ressalta.
Emprego versus Bolsa Família
O debate a respeito da influência dos programas sociais no mercado de trabalho ganhou novos capítulos desde a pandemia, com o aumento das transferências do Bolsa Família, de um valor médio de R$ 200 para R$ 600.
Um estudo conduzido por Daniel Duque, pesquisador de Economia Aplicada no Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), sugere que a expansão do benefício desencoraja a participação no mercado laboral de segmentos mais vulneráveis, desincentivando aqueles mais propensos a receberem benefícios sociais — principalmente quando os proveitos da assistência superam os do emprego remunerado. O efeito é especialmente marcante entre jovens, mulheres e trabalhadores de baixa qualificação. “Homens adultos têm um salário potencial maior, enquanto mulheres e jovens têm outras opções atrativas fora do mercado formal — cuidados com a casa, estudos, vida social etc.”, aponta. Para reverter essa tendência, Duque observa que seria preciso mudar o desenho do programa, reduzindo o valor do benefício básico. “Alternativamente, poderia aumentar os benefícios variáveis”, acrescenta.
O ponto de vista não é unânime. Para o diretor-adjunto de Relacionamento com o Direito do Trabalho do IBDP, Rafael Vasconcelos Porto, os valores do Bolsa Família não são vultosos o suficiente para desencadear um afastamento sistemático, das pessoas contempladas, do mercado de trabalho. “O que pode ocorrer é um desincentivo à formalização das relações laborais, permitindo que as pessoas acumulem as rendas — a do benefício e a do trabalho”, completa.
O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) defende que o Bolsa Família não desestimula o trabalho, além de representar um estímulo para a busca pelo emprego, conforme indicam estudos e pesquisas da pasta. Com a retomada do programa, em 2023, foi incluída a denominada Regra de Proteção, que permite aos beneficiários formalizarem vínculos empregatícios, ou empreenderem e aumentarem a renda, sem a perda imediata do benefício. Em abril de 2025, esse parâmetro valia para mais de três milhões de famílias inscritas no programa; em 2024, 1,3 milhão de famílias que tinham direito ao Bolsa Família superaram meio salário-mínimo de renda per capita e deixaram o programa de transferência de renda. Esse movimento é atribuído a fatores como crescimento econômico e valorização do salário mínimo, bem como iniciativas de apoio ao emprego e ao empreendedorismo.
O aumento da renda trabalhando é o que leva as pessoas a não aceitarem qualquer condição, nem remunerações extremamente baixas, na avaliação do MDS. “Quando a pessoa não tem como se alimentar, a primeira preocupação dela é ter o que comer. Quando a alimentação está assegurada, no caso pelo benefício social, ela tem disposição para buscar sair da condição de extrema pobreza ou pobreza”, destaca o ministro Wellington Dias. Em 2024, quase oito em cada dez (75,5%) vagas no mercado de trabalho foram ocupadas por beneficiários do Bolsa Família, segundo levantamento realizado pelo Ministério. No entanto, na análise de Afonso, da FEA-USP, falta ao Brasil uma visão agregada da proteção social. “Tem de haver uma articulação entre Previdência e programas de transferência de renda. Se a pessoa está fora do mercado formal, não terá direito à aposentadoria, mas possivelmente vai pleitear benefício social. A informalidade de hoje causará consequência amanhã”, resume.
Falta credibilidade
A expectativa de vida no Brasil é de 76,4 anos, com grandes variações entre ricos e pobres, populações urbanas e rurais. Com idades mínimas para a aposentadoria de 65 anos, para homens, e 62, para mulheres, serão mais de 40 anos de trabalho. Num mundo em constante transformação, é natural que quem comece a trabalhar agora não confie num sistema que prometa apoiá-lo num futuro tão distante. A intermitência dos vínculos ao longo da vida laboral também impede a mesma linearidade da contribuição à Previdência Social vista no passado. Para Cechin, da FenaSaúde, essa falta de confiança deriva de vários fatores. “Primeiro, nossa grande preferência pelo momento presente. Somos míopes e não imaginamos que um dia faltará força para trabalhar, mas continuaremos a viver, morar, comer, vestir e visitar médicos”, ressalta.
Pesam, ainda, as notícias negativas da Previdência: desvios, fraudes e sonegação. “Em terceiro lugar, a numerosa sucessão de reformas, alterando condições de elegibilidade para os benefícios, alíquotas de contribuição, idades de aposentadoria, tipos de benefícios, pensões. Quarto: as reiteradas notícias de déficits crescentes. Tudo isso mina a confiança na Previdência Social”, enfatiza Cechin. “Conversando com os meus alunos, pergunto se eles contribuem e a maioria afirma que não. Alegam que o governo não terá dinheiro, ou que não precisarão da aposentadoria por causa de outras fontes de renda”, conta Afonso, da FEA-USP.
Mais reformas
O IBDP considera que o novo fator de crise da Previdência Social — a precarização das relações de trabalho — pede uma reforma estrutural do sistema. Vasconcelos Porto, diretor do IBDP, lembra que a União Europeia formou uma comissão para estudar o tema e até hoje ainda não foi apresentado um relatório final. “Nossa recomendação é acompanhar o cenário europeu, pois, lá, os fatores de crise são mais longevos e aprofundados”, adverte. Muitos países — Espanha em especial, mas também Itália, França, Alemanha e Portugal — adotam sistemas parecidos com o nosso. “Os sistemas previdenciários precisam ser reformados periodicamente, já que devem ser ajustados aos novos tempos. Trata-se de um processo usual, corriqueiro no mundo todo, ou seja, não é um distúrbio do sistema brasileiro”, completa Rafaela, vice-presidente do IBDP.
“Os sistemas previdenciários precisam ser reformados periodicamente, já que devem ser ajustados aos novos tempos. Trata-se de um processo usual, não um distúrbio do sistema brasileiro.” Rafaela Cosme, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP)
Para reduzir a informalidade, Cechin defende uma expressiva redução dos encargos trabalhistas, possível somente com profundas reformas. “Ademais, as relações laborais estão sofrendo grandes transformações. O trabalho regular com carteira assinada está minguando e vai continuar assim. Teremos de pensar em regras de elegibilidade, contribuição, formação de valor e, ao mesmo tempo, novas formas de financiamento. É preciso fazer com que seja menos penoso pagar a Previdência para que mais pessoas possam, de fato, pagar”, sustenta o ex-ministro, que defende, ainda o aumento da idade mínima de aposentadoria. “O mundo inteiro caminha para 65 e 70 anos”, destaca. A reforma previdenciária de 2019 estabeleceu uma idade mínima de 65 anos para homens e 62 para mulheres, valores abaixo da média europeia, que varia entre 65 e 67 anos. A Alemanha está elevando a idade para 67, e a França, recentemente, aumentou para 64. A expectativa de vida nesses países é de cerca de sete anos superior à brasileira.
Por outro lado, Afonso, da FEA-USP, sugere a desvinculação do valor do benefício previdenciário ao salário mínimo. “Não é um posicionamento dos mais populares, mas não conheço qualquer país do mundo que dê aumento real acima da inflação aos seus aposentados. Uma hora, e isso não está longe, a conta será cobrada. Não existe uma ‘bala de prata’ — as medidas são, basicamente, aumentar a idade da aposentadoria, eventualmente reduzir o valor do benefício e elevar um pouco mais a contribuição —, não há solução indolor. A demografia está jogando contra todos nós”, ressalta.
Na opinião de Pastore, o Brasil precisa encontrar novas formas de financiamento. O especialista cita a experiência da Alemanha. É um sistema tripartite, no qual o governo divide o custeio da Previdência com os contribuintes e com as empresas. “É um produto que se encaixa bem para alguns profissionais autônomos, como os de rendas média e alta”, esclarece. Para os trabalhadores de renda baixa, o sociólogo sugere a implementação de produtos que poderiam começar com alíquotas muito pequenas, crescentes ao longo do tempo, a exemplo dos títulos de capitalização. “Esse sistema seria viável, porque a carreira é sempre um período muito longo, de 20, 30 ou 40 anos”, conclui.
Matéria originalmente publicada no site da Revista Problemas Brasileiros, uma realização da Federação.
A FecomercioSP acredita que a informação aprofundada é um instrumento fundamental de qualificação do debate público sobre assuntos importantes não só para a classe empresarial, mas para toda a sociedade. É neste sentido que a entidade publica, bimestralmente, a Revista Problemas Brasileiros.
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