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Editorial

Ives Gandra: plena democracia e estabilidade do País exigem abandono do sistema presidencial

Segundo o presidente do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP, o sistema presidencial de governo é a principal causa de todas as crises políticas que vivemos no século XX

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Ives Gandra: plena democracia e estabilidade do País exigem abandono do sistema presidencial

No sistema parlamentar o leitor controla o Parlamento e este controla o governo, durante o mandato legislativo
(PixAbay)

Ives Gandra Martins

Embora divirjam os autores na conformação conceitual das duas formas de governo referidas, entendendo uns que correspondem a autênticos sistemas e outros regimes jurídicos de exercício do poder, preferimos fugir ao debate semântico utilizando-nos de um de outro vocábulo, mas trazendo à reflexão aqueles aspectos que os diferenciam e que lhes dão a tônica dominante.

O parlamentarismo é, por excelência, o sistema de governo representativo, posto que toda a sua conformação foi plasmada a partir das conquistas populares de co-participação, no excelente laboratório em que a Inglaterra se transformou, por muitos séculos, para a experiência democrática.

O sistema parlamentar de governo propicia a plenitude de tal exercício, visto que todas as correntes de pensamento nacional podem ser representadas nas Casas Legislativas, permitindo, por outro lado, que, nas composições que se fazem necessárias para a formação de Gabinetes, os parlamentares, escolhidos pelo povo, exerçam sua força de representação, na indicação, participando e controlando o Gabinete encarregado de governar o País.

Os governos de um homem só, assim como aqueles originários das absolutas e despóticas monarquias ou ditaduras, não podem conviver com o sistema parlamentar, visto que neste a representatividade popular é essencial e não naqueles.

O presidencialismo, ao contrário, surge – nos modelos conhecidos, exceção feita à solução americana, que se constitui em um parlamentarismo presidencial – como versão atual das monarquias absolutas do passado.

O Presidente, uma vez eleito, é titular absoluto e irresponsável por seu mandato, nomeando ministros e auxiliares, sem qualquer necessidade de controle e à revelia da vontade popular, eis que o eleitor que o escolhe tem os seus direitos políticos restritos ao voto periódico e nada mais.

Com pertinência, Raul Pila entendia ser o presidencialismo sistema de governo de ‘irresponsabilidade a prazo certo.’ Uma vez eleito o Presidente da República, o povo deveria suportá-lo, bom ou mau, até o fim do mandato. Se muito ruim, apenas a ruptura institucional poderia viabilizar sua substituição, posto que a figura do impeachment é aplicável somente à inidoneidade administrativa e não à incompetência.

Contrariamente, o parlamentarismo é o sistema de governo da ‘responsabilidade a prazo incerto.’ O governo apenas se mantém enquanto merecer a confiança do eleitor. Se não, será substituído, com a crise política encontrando remédio constitucional para sua solução.

Durante a guerra das Malvinas, a primeira-ministra da Inglaterra era obrigada a comparecer diariamente ao Parlamento para prestar contas de sua ação. Se perdesse a guerra, seria derrubada e substituída por um outro ministro, visto que a responsabilidade é a nota principal do parlamentarismo.

O presidente da Argentina, por seu lado, ofertava as informações que desejava ao povo, sem a responsabilidade de dizer a verdade, visto que se sentia livre para ‘fabricá-la’. A derrota argentina provocou seu afastamento, através de ruptura institucional, à falta de mecanismos capazes de equacionarem tais crises no sistema presidencial.

O sistema parlamentar é, por outro lado, sistema conquistado pelo povo. Nasce de suas aspirações e reivindicações. Assim foi na Inglaterra e em todos os países em que se instalou.

O presidencialismo, pelos seus resquícios monárquicos, posto que o Presidente da República é um monarca não vitalício, constitui-se em sistema outorgado pelas elites dominantes, que sobre escolherem entre elas aqueles nomes que serão ofertados à disputa eleitoral, necessitam do eleitor apenas para sua indicação.

Em outras palavras, no sistema parlamentar o leitor controla o Parlamento e este controla o governo, durante o mandato legislativo.

No sistema presidencial, sobre não ter o eleitor o poder de escolha de uma gama variada de candidatos, mas somente entre os poucos elencados pela elite, sua participação política resume-se, exclusivamente, no depósito de um voto na urna e nada mais.

À evidência, o sistema parlamentar, para permitir esta corrente de mútuos controles, deve se alicerçar no voto distrital, de um lado, e no direito de dissolução do Congresso por parte do Poder Moderador, de outro. Na primeira estaca do sistema, o voto distrital permite que o eleitor conheça, conviva e controle o seu representante, que, por seu lado, depende para reeleição, no distrito em que vive e por que concorre, de representar condignamente aqueles que nele depositaram o voto e a confiança.

Graças ao voto distrital, o Parlamento se transforma, efetivamente, na Casa de representação de todos os segmentos e correntes do pensamento político, econômico e social de uma nação. A própria escolha, pelo parlamentar, do Gabinete que deve governar o país será sempre exercitada com a preocupação de intuir a vontade de seu eleitor. Sua participação na escolha do governo e no seu controle, em verdade, transforma-o em longa manus da vontade popular.

Por outro lado, o direito do Chefe de Estado de dissolver o Congresso, se este derrubar Gabinetes constituídos, com muita freqüência, traz elemento de estabilização às relações entre Parlamento e Gabinete, posto que se ‘irresponsável’ o Parlamento, poderá o Chefe do Estado consultar novamente o eleitor para saber se aquele Parlamento continua a merecer confiança de seu eleitorado.

E a própria separação da figura de Chefe de Estado da do Chefe de Governo não permite que o Chefe de Estado seja envolvido nas crises políticas, fator de equilíbrio que o presidencialismo não pode ofertar pela confusão na mesma pessoa das duas representações.

Não é sem razão que nas 21 únicas democracias estáveis que o mundo conheceu, sem solução de continuidade, de 1945 até 1984, 20 eram parlamentares e naquela única presidencial (a americana), o Parlamento é de tal forma vigoroso que derruba presidentes, ao contrário dos demais países presidencialistas em que os presidentes fecham os Congressos.

Por outro lado, a experiência latino americana, com o modelo presidencialista, é penosa, na medida em que a falta de mecanismos para solução de crises políticas tem levado todos os países que o adotaram, a regimes pendulares, os quais vão da ditadura à democracia precária e desta à ditadura.

O presidencialismo é, portanto, um sistema tendente à democracia, mas inibido pela sua origem e pela pouca confiabilidade do homem no poder, razão pela qual não poucas vezes trabalha contra a democracia.

O parlamentarismo, pela sua própria formulação de conquista popular, é sistema plenamente democrático, motivo por que, nas muitas crises por que passa, encontra sempre formas renovadas de preservação da democracia e da vontade popular.

O presidencialismo clássico não é o americano. Esse foi apenas o primeiro sistema criado. A tradição inglesa de Parlamento forte fez da experiência americana uma experiência ímpar, visto que o Parlamento nunca perdeu sua dignidade, desde a preparação da Carta Magna daquele país, este ano completando 200 anos.

O presidencialismo clássico foi aquele desenvolvido por todos os países que procuraram copiar a solução americana, sem a mesma tradição parlamentar. Hegel, que contestou Montesquieu, de quem foi aluno espiritual, pretendia criar um poder ideal, ao contrário do Mestre, que não se iludia sobre a natureza humana.

O presidencialismo clássico, em que na figura de um homem só se concentra a essência do poder, torna-o mais vulnerável às tentações próprias de quem detém a força e, com o tempo, com ele se identifica, transformando aqueles que governa, não em seus superiores a quem deveria servir, mas em seus inferiores que lhe devem obedecer.

O parlamentarismo clássico é o inglês ou o belga que neles o chefe de governo é realmente aquele que governa (13). Não é o francês, nem o português.

É bem verdade que o parlamentarismo clássico pressupõe o bipartidarismo ou pluripartidarismo. Nos países em que o bipartidarismo domina, como na Inglaterra, tal parlamentarismo reveste a forma de governo majoritário, ou seja, o partido que ganha as eleições governa sem necessidade de apoio e participação do partido derrotado.

Nos países em que o pluripartidarismo prevalece, o modelo é consensual. O partido ou a coligação vencedora governa com participação de muitos partidos, inclusive de partidos minoritários.

O governo decorre, pois, de um consenso político, reflete-o e se orienta em tal linha. Entre o parlamentarismo puro e o presidencialismo puro colocam-se os sistemas mistos, como o francês ou o americano.

Mister se faz, todavia, rápida observação. Nos sistemas parlamentares puros os partidos políticos se fortalecem e passam a representar as aspirações populares.

No presidencialismo puro, as estruturas partidárias são fracas, meros instrumentos institucionais para que as personalidades, nem sempre com elas identificadas, possam alçar-se ao poder. Os partidos políticos são, portanto, instrumentos do povo no parlamentarismo e das elites políticas dominantes no presidencialismo.

Os sistemas mistos parlamentaristas de que falávamos são aqueles em que se procura solução intermediária, ofertando menos participação governamental ao Chefe de Governo, que o dirige ao lado do Chefe de Estado. Assim é que o Presidente da República, na França e em Portugal, indica determinados ministros que divergem e discutem com o chefe de governo a política que deva ser adotada para o País.

A solução não nos parece ideal, na medida em que, por ser o Presidente da República não demissível e sê-lo o primeiro-ministro, nos impasses criados, se pertencentes a coligações partidárias ou partidos diversos, nem sempre encontram mecanismos de solução fácil, no arsenal jurídico institucional.

A França, na atualidade, enfrenta problemas de convivência sérios, mormente porque o presidente socialista diverge da linha econômica do primeiro-ministro liberal, gerando choques que desestabilizam, muitas vezes, os projetos nacionais, sobre permitirem que os grupos de pressão se formem para tirar vantagens das divergências e choques entre um primeiro-ministro mais fraco do que deveria ser, em regime parlamentar, e um presidente mais fraco do que deveria ser, em regime presidencial.

Pode-se, entretanto, resumir a questão formulada na colocação de existência de três tipos clássicos, a saber: o parlamentar, o presidencial e o misto.

Em nossa opinião, o melhor dos três é inequivocamente o parlamentar puro, na medida em que fortalece as estruturas políticas, gera a responsabilidade do eleitor e do eleito e obriga o permanente exercício democrático, com a depuração natural de elementos aproveitadores e oportunistas, que se encontram em número consideravelmente menor que nos sistemas presidenciais conhecidos (18).

O período político mais estável que o Brasil conheceu foi à época do 2º Império, em que o país possuía o sistema parlamentar de governo. Por aproximadamente 50 anos, mesmo enfrentando uma guerra externa, a que o país foi levado sem preparação, os Gabinetes se sucederam, mas a estabilidade permaneceu.

Rui Barbosa, introdutor do presidencialismo no país, declarava, desconsolado 10 anos após, que preferia a instabilidade do parlamentarismo à irresponsabilidade do presidencialismo, em ‘desabafo’ que deveria fazer pensar todos os constituintes brasileiros de todas as épocas.

O presidencialismo no Brasil, por outro lado, apenas trouxe insegurança política e sistema gangorral entre períodos de ditadura real e outros de débil democracia.

De 1889, quando uma quartelada derrubou a monarquia do Brasil, ao ponto de Marechal Deodoro pensar ter derrubado o Gabinete e não a monarquia, o Brasil conheceu revoluções periódicas (1918, 1924, 1939, 1937,1954, 1957), sucumbiu à ditadura de 1930/45 e ao regime de exceção (1964 a 1984), precisando de 5 constituições para conformá-lo (1891,1934, 1937, 1946 e 1967) e estando, após 27 emendas apresentas à última, preparando-se para elaborar a 6º Carta Republicana.

Em termos históricos, portanto, a experiência presidencialista não foi positiva e a parlamentar foi consideravelmente menos negativa.

Em termos de desenvolvimento atual, em que o país se transformou no 8º mercado do mundo ocidental e que, não obstante os desacertos da política econômica governamental, graças a empresários e empregados, ganha novos patamares de confiabilidade externa, não obstante o esforço governamental em destruí-la, não há por que não se adotar o sistema parlamentar que, sobre ser o mais estável no concerto das nações representa também forma mais democrática e civilizada de governo.

Nem se diga que, por ser um Estado Federativo, o Brasil, em face do bicameralismo, dificultaria o exercício dessa forma mais civilizada, posto que a Alemanha, Canadá, Austrália também o são e o parlamentarismo tem permitido a segurança das instituições, mesmo nas crises políticas, sociais e econômicas mais graves que viveram.

Entendemos que o momento é de amadurecimento das instituições e o Brasil necessita, de uma vez por todas, abandonar aquelas que trazem resquícios das monarquias absolutas, visto que, no presidencialismo, o Poder Executivo é hipertrofiado e os Poderes Legislativo e Judiciário enfraquecidos.

Só teremos plenitude democrática e uma carta suprema mais estável se abandonarmos, definitivamente, o sistema presidencial de governo, principal causa de todas as crises políticas que vivemos no século XX.

*Ives Gandra Martins é presidente do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP.
Artigo publicado no portal JUSBRASIL no dia 21 de outubro de 2016.

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