Editorial
08/08/2025Livros para quem? Nunca se leu tão pouco no Brasil
Dado contrasta com o crescente interesse do público por eventos literários, como a Flip

Quem andou pelas ruas de pedras do Centro Histórico de Paraty, no Rio de Janeiro, durante os cinco dias da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), pôde presenciar ruas lotadas, eventos com ingressos esgotados e enormes filas para conseguir autógrafos de autores alçados a celebridades. O cenário poderia indicar que brasileiros são leitores vorazes. Os números, porém, mostram uma realidade totalmente oposta.
Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada em 2024 pelo Instituto Pró-Livro, nunca se leu tão pouco no País. O estudo revela que 53% da população não leu nenhum livro nos três meses anteriores ao levantamento. Além disso, de acordo com a série histórica, foi a primeira vez que a maioria dos brasileiros foi classificada como não leitora.
Além da Flip, as últimas edições das bienais do livro, nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, bem como d’A Feira do Livro, também na capital paulista, nunca atraíram tanto público e registraram vendas tão expressivas. Essa contradição — a paixão por eventos literários e a queda da leitura — intriga o mercado editorial, que ainda não tem uma resposta pronta para a questão. “Temos visto mais clubes de leitura, as pessoas estão mais apaixonadas e engajadas. Se, por outro lado, a leitura diminui, existe uma aproximação com a literatura quando o foco são as bienais e os festivais”, resume a diretora de Cultura e Educação da Flip, Belita Cermelli.
Valorização do ler
É consenso entre os profissionais do setor que é preciso investir em políticas públicas para valorizar o livro e a leitura num país que perde leitores a partir da adolescência. Pesa a concorrência, principalmente, com os dispositivos eletrônicos e as redes sociais. “Na escola, o índice de leitura é alto, mas cai com a entrada no mercado de trabalho. A missão de todo mundo que trabalha com livros é aumentar o número de leitores, e estamos aprendendo a melhor forma de fazer isso”, afirma Ana Lima Cecilio, curadora da Flip. “Temos de adotar a postura de compreender que é preciso dar a mão para quem gosta de ler e a sensibilidade para saber o que o público quer ver”, reforça.
Para Luciano Monteiro, vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), além do baixo poder aquisitivo das famílias, o espaço para os livros nas escolas sofreu uma redução nos últimos anos. “É preciso valorizar mais a leitura, recuperar o sistema de bibliotecas e as compras governamentais para que a literatura chegue às escolas”, observa. O Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) — política pública brasileira que tem o objetivo de promover o livro, a leitura, a escrita, a literatura e as bibliotecas entre 2025 e 2035 — está atualmente em fase de consulta pública e pode ajudar a criar um ambiente mais favorável ao livro, opina.
Nomes e números de peso
Em sua 23ª edição, a Flip 2025 contou com autores de peso, como o português Valter Hugo Mãe, o italiano Sandro Veronesi e a espanhola Rosa Montero, que autografou livros por mais de quatro horas. O evento contou também com a presença da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, que foi aplaudida de pé e “tietada” como autora best-seller.
As ruas coloniais da cidade fluminense receberam 34 mil pessoas, um aumento de 10% em relação ao ano passado. A taxa de ocupação das pousadas chegou a 98%, segundo a Prefeitura de Paraty. E a quantidade de Casas Parceiras — programa que permite que diversas instituições culturais participem da Flip com iniciativas próprias — subiu de 29 para 35, com a presença de autoras como Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo. A Livraria da Travessa, loja oficial do evento, comercializou 20.473 livros. Em 2024, foram 15 mil exemplares.
Diante do consenso de que é fundamental estimular a leitura desde a infância, os eventos literários têm investido em programações e lançamentos para crianças e jovens. Das 35 Casas Parceiras da Flip, 25 ofereceram atividades para esses públicos. Desde 2023, o evento faz articulação com as escolas da região de Paraty, com ações prévias como rodas de conversa entre autores e alunos. A Flipinha, voltada para o público infantil e escolar, realizada na Praça da Matriz, recebeu 4.427 pessoas.
O diretor editorial do Grupo Editorial Record, Cassiano Elek Machado, acredita que, com a mudança estrutural no varejo do livro nos últimos anos — que viu o fechamento de grandes lojas como Saraiva, Cultura e Fnac —, o leitor perdeu o relacionamento corpo a corpo com o livro. Pesam ainda as compras online, que diminuem o público das livrarias. “O Brasil perdeu quilômetros de prateleiras e de locais de exposição de livros, e a venda migrou fortemente para o universo virtual. Eventos como as bienais e as feiras potencializam a relação do leitor com o livro, uma vez que se trata de algo fora do cotidiano”, avalia Machado, que foi curador da Flip em 2007.
Mercado independente
Se as grandes livrarias fecharam, existe um movimento de expansão das livrarias e editoras independentes. Segundo a Associação Nacional de Livrarias (ANL), a Cidade de São Paulo contava 821 livrarias independentes em 2013. Em 2023, alcançou 1.167 lojas, um aumento de 42,2% no período. “Esse crescimento de livrarias e editoras independentes, ou de nichos específicos, está na base da bibliodiversidade. E ajuda a ampliar e preservar um conceito fundamental, que é o da diversidade de gêneros, títulos e autores que reflita a produção cultural do Brasil inteiro”, ressalta Monteiro, da CBL.
Segundo Raquel Menezes, conselheira do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) e ex-presidente e atual conselheira da Liga Brasileira das Editoras (Libre), o segredo para estimular a leitura é aproximar o livro do entretenimento, da mesma forma que se faz com o cinema e outras artes. “Não podemos pensar no livro e na leitura somente como algo para educação e formação, isso afasta o leitor. As pessoas procuram o livro como entretenimento e o mercado precisa se apropriar disso”, pontua Raquel, que também é diretora-executiva e publisher da Oficina Raquel, editora independente com foco em diversidade. Na Bienal do Rio de Janeiro de 2025, a Oficina dividiu um estande com outras 19 editoras. “As curadorias estão olhando para a representatividade. E é olhando para a representatividade que a gente vai conseguir aumentar o número de leitores”, completa.
A Megafauna, livraria que costuma dar atenção especial para temas e autores das comunidades LGBTQIA+ e negra, bem como para o público feminino, investe em eventos literários para engajar o público. Além da unidade no Edifício Copan, no centro da capital paulista, inaugurou, há um ano, uma loja no térreo do Teatro Cultura Artística, também no centro, além de manter uma programação literária contínua em um dos auditórios do teatro.
São cerca de 150 eventos por ano, o que inclui a participação n’A Feira do Livro e a criação da primeira edição do Festival Poesia no Centro, ocorrido em maio deste ano e que deve ser realizado anualmente. Na Flip há três anos, incluiu, em 2025, uma programação unindo música e poesia. “São eventos que sempre envolvem apresentação pública, debates, leituras ou apresentações artísticas. Nunca é só uma sessão de autógrafos”, explica Irene de Hollanda, diretora da Livraria Megafauna e ex-coordenadora da Flip. “Acho que o formato de espaço de encontro em torno da literatura está em um momento importante e o público tem bastante interesse em eventos literários”, conclui.
Matéria originalmente publicada no site da Revista Problemas Brasileiros, uma realização da Federação.
A FecomercioSP acredita que a informação aprofundada é um instrumento fundamental de qualificação do debate público sobre assuntos importantes não só para a classe empresarial, mas para toda a sociedade. É neste sentido que a entidade publica, bimestralmente, a Revista Problemas Brasileiros.
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