Legislação
25/08/2025Incertezas em torno da Reforma Tributária podem aumentar contencioso tributário pós-reforma
Ainda não está claro como serão decididas as disputas administrativas e judiciais diante do IBS e da CBS, dificultando a harmonização com o contribuinte






















A quatro meses do início da fase de transição da Reforma Tributária, as incertezas ainda pairam no ar e tornam esse processo ainda mais complexo. Se muitos contribuintes ainda têm dificuldade de compreender todos os aspectos do novo sistema, que foram regulamentados pela Lei Complementar 214/2025, nos âmbitos judicial e administrativo a situação é ainda pior, pois muitas regras precisam ser aprovadas pelo Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2024, em tramitação no Senado Federal.
Corre-se o risco de que toda a experiência acumulada pelos órgãos administrativos, durante décadas, seja deixada de lado, pois o Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias será soberano nas decisões acerca do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).
O destino dos processos administrativo e judicial no pós-reforma foi debatido na reunião do Conselho de Assuntos Tributários da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), na quarta-feira (20), pela advogada Ana Cristina Assunção, sócia do escritório Brigagão, Duque Estrada Advogados e diretora do Instituto Mineiro de Direito Tributário (IMDT), e por Leonardo Alvim, coordenador do Comitê Jurídico da Câmara de Promoção de Segurança Jurídica no Ambiente de Negócios (Sejan) da Advocacia Geral da União (AGU) e membro do Grupo de Trabalho sobre Reforma Processual Tributária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Durante o encontro, que aconteceu em parceria com a Associação Brasileira de Advocacia Tributária (Abat), Halley Henares, presidente da Associação, afirmou que o tema deve ser discutido com seriedade para evitar o aumento do contencioso. “O processo administrativo não pode ficar no porão da Reforma Tributária. Se o objetivo da reforma é diminuir a judicialização, deve-se definir claramente as regras do processo legal. Insegurança gera litígio”, ponderou.
Cenário nebuloso
A Reforma Tributária inaugura um novo capítulo no complexo universo do contencioso tributário, demandando uma adequação inédita entre normas, processos administrativos e a jurisprudência dos tribunais.
Diante disso, a tributarista Ana alertou que, sem a devida sincronia na cobrança do IBS e da CBS, o País corre o risco de ver triplicar o número de processos, sobrecarregando o Poder Judiciário e perpetuando a insegurança jurídica que a reforma pretende sanar.
“Mais que o diálogo entre as decisões do contencioso administrativo tributário e as do Poder Judiciário, é necessário que ambas as instâncias — administrativa e judicial — tenham o mesmo desfecho. Vale dizer, o diálogo é salutar, mas é indispensável que, uma vez fixada a orientação do Poder Judiciário, a instância administrativa a acolha”, apontou Ana.
Segundo Márcio Olívio Fernandes da Costa, presidente do Conselho de Assuntos Tributários da FecomercioSP, é importante observar como os precedentes judiciais já firmados poderão influenciar o novo sistema tributário e avaliar a necessidade de ajustes na legislação processual, tanto na esfera administrativa quanto na judicial. “Nesse cenário, torna-se fundamental analisar como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) deverão se posicionar diante dessa nova realidade normativa e de que forma a jurisprudência poderá — ou deverá — ser conciliada para garantir a estabilidade do sistema e a segurança jurídica”, afirmou Costa, que também preside o Conselho Estadual de Defesa do Contribuinte de São Paulo (Codecon-SP).
Um diálogo de surdos
Atualmente, um litígio tributário segue um percurso bem conhecido: o Fisco realiza o lançamento, o contribuinte defende-se nos Tribunais Administrativos — como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e o Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT-SP) — e, se insatisfeito, parte para o Poder Judiciário. O grande nó está no descompasso frequente entre as decisões dessas instâncias.
Enquanto o Judiciário, guiado pelo Artigo 926 do Código de Processo Civil (CPC), busca uniformizar sua jurisprudência por meio de recursos repetitivos e repercussão geral, a administração tributária nem sempre se curva a esses entendimentos.
A Reforma Tributária propõe uma mudança de paradigma ao criar estruturas centralizadas para administrar e julgar os novos tributos. Nesse novo contexto, o Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias seria o responsável por uniformizar a interpretação da legislação e, de forma inédita, decidir o contencioso administrativo.
Apesar do arcabouço teórico robusto, a transição será repleta de desafios. Um relatório do STJ projeta que os processos tributários na corte podem triplicar, saltando de 28.764 para mais de 86 mil novos casos, se cada ente da Federação — União, Estados e Municípios — ajuizar execuções em separado para um mesmo fato gerador.
Além do volume, temas como o creditamento, a compensação de saldos credores do Programa de Integração Social (PIS), da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), a não inclusão do IBS e da CBS na base de cálculo de outros impostos — seguindo a lógica do RE 574.706 do STF —, e a cobrança do Imposto Seletivo (IS) são apontados como potenciais fontes de judicialização.
De acordo com Alvim, o texto do PLP 108 projeta um Comitê soberano, que não poderá afastar a legislação tributária por ilegalidade — o que é um retrocesso — e que pode não atender às exigências técnicas na matéria tributária pela sua composição.
O Carf e o TIT restringem apenas o afastamento da legislação por inconstitucionalidade. O PLP 108, entretanto, veda também o afastamento da legislação por ilegalidade — mantendo a inconstitucionalidade. Além de restringir a atuação do órgão administrativo, corre-se o risco de que os atuais tribunais também limitem sua atuação.
“O texto atual prevê um conselho superior que manda em tudo, o Comitê Gestor do IBS, que será composto por secretários fazendários, que não são advogados ou tributaristas, e que decidirão os destinos de todos. Isso é temerário, pois pode resultar em desembaraços controversos que gerarão ainda mais litígios”, observou Alvim.
Para evitar um colapso, discute-se no Congresso Nacional e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a criação de um foro nacional online, com colegiados de composição mista — juízes estaduais e federais —, dedicado a analisar as causas envolvendo o IBS e a CBS, centralizando e agilizando soluções.
Mais (in)segurança
Alvim e Ana concordaram que a Reforma Tributária é um ponto de partida, não de chegada. A promessa de um sistema tributário mais simples e seguro depende criticamente de que o diálogo entre a norma e a jurisprudência seja eficiente.
“Muitas vezes as decisões políticas impedem que sejam criados antídotos para evitarmos mais complexidade e litigiosidade. Contudo, deve prevalecer a intenção da harmonização, da uniformidade, mesmo diante das diferenças enormes de entendimento entre Estados, Municípios, União e contribuintes”, enfatizou Alvim.
A harmonização não será um dado automático, mas uma construção que exigirá maturidade institucional do Comitê Gestor do IBS, adesão das procuradorias aos entendimentos do Fórum de Harmonização e uma justiça ágil e especializada.
Se bem-sucedido, o modelo poderá reduzir drasticamente a litigiosidade. Se falhar, o Brasil poderá assistir à mais complexa e volumosa onda de litígios tributários de sua história. O caminho escolhido definirá o legado real da reforma.