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Editorial

Cientistas e armas de destruição em massa, por José Goldemberg

Presidente do Conselho de Sustentabilidade da FecomercioSP discute relação de trabalhos científicos com bombardeios mundiais

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Cientistas e armas de destruição em massa, por José Goldemberg

Grande maioria dos cientistas não é movida por nenhum outro interesse além da curiosidade (Arte/Banco de imagens)

Há alguns anos, em visita à London School of Economics, tive a oportunidade de assistir a um exercício acadêmico interessante: o "julgamento" de Karl Marx pelos crimes cometidos na União Soviética a partir de 1917. Marx foi um filósofo alemão do século XIX que formulou ideias sobre a evolução da economia mundial, a transição da economia feudal para a economia do século XIX (com a ascensão da burguesia) e sua eventual substituição por uma economia socialista em que os meios de produção passariam às mãos do Estado. Essas ideias inspiraram Lênin a liderar a Revolução em 1917 que instalou a ditadura do proletariado na Rússia, depois conduzida por Stálin.

O exercício acadêmico foi presidido por um juiz da Corte Suprema da Inglaterra; alunos desempenham o papel de promotor e advogado de defesa e o júri era formado pelos demais alunos que assistiam aos debates.

A acusação argumentou que a implantação do comunismo na Rússia causou milhões de mortos e que Marx era o responsável por esses crimes como formulador das ideias implementadas por Lênin e Stálin.

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O argumento que prevaleceu foi a de que os "crimes" foram cometidos por homens de ação como Lênin e Stálin, isto é, agentes políticos, e não por um pensador como Marx, que formulou suas ideias como resultado de suas pesquisas. Após longas horas de debates o júri inocentou Marx. Se tivesse sido "condenado", outros filósofos como Schopenheuer deveriam ser incluídos na mesma categoria, como os inspiradores das ações de Hitler na Alemanha.

Essa experiência é relevante para discutir o papel e a responsabilidade de cientistas em todas as áreas do conhecimento humano, desde Arquimedes no século II antes de Cristo até Einstein em meados do século XX e certamente outros nos dias atuais.

O que caracteriza o trabalho científico e os cientistas em geral é a procura da causa dos fenômenos que ocorrem em torno de nós. Para isto, eles podem realizar experiências como fez Galileu para formular as leis do movimento ou ideias sobre as razões pelas quais os corpos caem, ou como fez Newton para explicar o movimento dos planetas em torno do Sol.

Einstein aprofundou as ideias de Newton e formulou novas ideias sobre a natureza da luz e da própria matéria, que mudaram nossa visão do mundo, e estas ideias foram confirmadas pela experiência.

Como regra geral, a grande maioria dos cientistas não é movida por nenhum outro interesse além da curiosidade. Reconhecimento, glória e até esperanças de benefícios financeiros podem representar algum papel, mas isso é incomum.

Foi daí que surgiu a ideia de que cientistas são distantes das realidades da vida prática, distraídos e até desorganizados em sua vida do dia a dia, o que de fato ocorre com frequência, apesar de serem meticulosos e organizados no seu trabalho científico. Em outras palavras: usualmente tanto os cientistas quanto os filósofos como Marx e Schopenhauer não são homens de ação.

Sucede que as consequências do seu trabalho podem ter consequências extraordinárias, tanto para o bem quanto para o mal, quando inspiram homens de ação, líderes políticos e governos que colocam as suas ideias em prática independentemente da vontade dos cientistas.

Um dos melhores exemplos é o do próprio Einstein, que teve um papel decisivo no estabelecimento de um programa de construção de bombas atômicas pelo governo dos Estados Unidos no início da Segunda Guerra Mundial em 1939, quando parecia que a Alemanha de Hitler venceria o conflito.

As teorias de Einstein permitiram entender que a fissão dos átomos de urânio permitiria produzir bombas com poder explosivo milhões de vezes mais poderosas que as explosões de produtos químicos como nitroglicerina.

Ele escreveu ao presidente Franklin Roosevelt alertando-o que os alemães já estavam realizando trabalhos na mesma direção. Robert Oppenheimer, que era um físico atuante, foi colocado à frente do projeto. Em 1945, apenas cinco anos após a carta de Einstein a Roosevelt, a primeira bomba nuclear explodia sobre Hiroshima no Japão, matando cerca de 100 mil habitantes, além de causar consequências graves aos sobreviventes.

O que se pode perguntar é: se os japoneses vencessem a guerra e fizessem um julgamento dos responsáveis por essa hecatombe, seria Einstein condenado? Oppenheimer? O presidente Roosevelt ou o presidente Harry Truman, seu sucessor que autorizou o lançamento?

É bem verdade que os cientistas nesse julgamento poderiam alegar circunstâncias atenuantes. Em 1945, antes do lançamento, os cientistas que trabalharam na construção das bombas em Los Alamos fizeram um manifesto que foi levado ao presidente Truman por Oppenheimer na companhia do secretário de Estado, Dean Acheson, solicitando que a bomba não fosse lançada sobre cidades japonesas.

Truman não só recusou o pedido - argumentando que o uso de armas de destruição em massa contra os japoneses pouparia muitas milhares de vidas de soldados americanos na reconquista do território japonês -, como disse ao secretário Acheson para não tornar a levar um tolo ("fool" em inglês) como Oppenheimer à sua presença.

Em 1948, a União Soviética explodiu sua primeira bomba atômica, iniciando uma "corrida armamentista" que nos assombra até hoje.

Testes de armas nucleares que lançavam enormes quantidades de radioatividade na atmosfera se tornaram frequentes a partir de 1948. Nesta "corrida", logo os militares americanos pressionaram o governo a fazer bombas nucleares de hidrogênio ainda mais potentes, a partir de 1952. Oppenheimer, que se opôs a este programa, caiu em desgraça e foi afastado.

Isso provocou tamanho alarme entre os cientistas que Einstein e Bertrand Russel lançaram em 1955 um manifesto pacifista com a seguinte linguagem:

"Cientes da constatação de que em uma eventual guerra mundial armas nucleares serão certamente utilizadas, ameaçando a existência da humanidade, conclamamos os governos a que aceitem e que reconheçam publicamente que os interesses de Estados não podem ser alcançados militarmente; instamos, consequentemente, que busquem meios pacíficos para a negociação das questões em pauta".

Ela foi seguida por um manifesto de 18 eminentes cientistas alemães (Declaração de Mainau) no mesmo sentido. Entre os signatários estava Otto Hahn descobridor da fusão nuclear.

A atitude do governo alemão em relação a estas manifestações é expressada com fidelidade pelo então ministro de defesa da Alemanha, Franz Joseph Strauss, que disse que Otto Hahn é "um velho imbecil que não consegue conter as lágrimas, nem dormir, quando pensa em Hiroshima".

Provavelmente a única razão pela qual a Alemanha nazista não conseguiu produzir armas nucleares durante a Segunda Guerra Mundial foi que Hitler estava tão entusiasmado em produzir foguetes que eram lançados sobre Londres que não deu ênfase suficiente aos cientistas que, sob a liderança de Werner Heisenberg, trabalharam no projeto. Em 1967, Albert Speer, o poderoso ministro nazista encarregado do esforço industrial de guerra, declarou que oferecera a Heisenberg o apoio que necessitasse e ficou decepcionado com as solicitações modestas de equipamento e pessoal feitas por ele. Existem rumores de que Heisenberg fez isso deliberadamente para retardar o projeto nuclear, mas isso nunca foi satisfatoriamente confirmado.

De qualquer forma, é claro que tanto nos Estados Unidos como na Alemanha foram decisões políticas tomadas no mais alto nível que determinaram o curso dos eventos e que os cientistas que descobriram os princípios teóricos a partir dos quais as armas nucleares são construídas foram utilizados pelos governos para seus objetivos sem maiores considerações de caráter moral ou ético.

As ilusões dos cientistas de que seriam ouvidos nas decisões sobre a utilização dos produtos, que não existiriam sem seus esforços, foram brutalmente destruídas como mostram as declarações do presidente Truman sobre Oppenheimer ou do ministro Strauss sobre Otto Hahn.

Ao que tudo indica, para os governos não há muita diferença entre armas nucleares e outras usadas nos conflitos, apesar de aquelas serem armas de destruição em massa.

Foi preciso que decorressem 18 anos, até 1963 - durante os quais 499 testes nucleares foram realizados, a maioria na atmosfera -, para que o presidente John Kennedy e o premiê Nikita Kruschev, da União Soviética, assinassem um tratado proibindo testes nucleares na atmosfera, no oceano e no espaço.

A eliminação gradativa de armas nucleares não ocorreu até hoje.

* José Goldemberg é Presidente do Conselho de Sustentabilidade da FecomercioSP 
Artigo originalmente publicado no jornal do Valor Econômico, em 28 de julho de 2017

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